As concepções que fundamentam os nossos artigos

Divulgue e opinie

A Psicologia Semiótica e Cultural [existem, portanto, “versões” da Psicologia Cultural] é uma abordagem relativamente recente e foi evoluindo a partir das ideias de diversos cientistas. Na busca pela afirmação de sua identidade, passou por diversas denominações, que encontramos mencionadas nos trabalhos dos seus pioneiros ao longo dos últimos 30 anos.

Denominou-se abordagem sociocultural construtivista (Pires e Branco, 2007, 2008), Psicologia Cultural (Valsiner, 2014) e, recentemente, os principais pesquisadores resolveram incluir a palavra “semiótica” (Wagoner, Christensen & Demuth, 2021) para destacar as dimensões simbólica, narrativa e dialógica como centrais para a sua formulação teórica. 

São esses os aspectos que orientam tudo o que escrevo, destacando sua ótica na liberdade, na necessidade do desenvolvimento da responsabilidade, juntamente com os processos de construção colaborativa de sentidos e de significados e sua imbricação (entrelaçamento) com as emoções humanas.

Nas palavras de James Wertsch (2021, p.71):

Qualquer versão da Psicologia Cultural assume que a vida mental humana é guiada pelos contextos socioculturais, e essa afirmação se aplica tanto aos pesquisadores quanto àqueles que ele estude.

Este artigo explicita os referenciais científicos e filosóficos que orientam o que escrevo, penso e experimento como ser humano. Até onde pude estudar, essas são as idéias mais avançadas que conheço sobre o desenvolvimento psicológico do ser humano.

 

Qual é o potencial da Psicologia Semiótica e Cultural?

Os Psicólogos Culturais trabalham no limite do conhecimento psicológico disponível. Muito do potencial dessas idéias ainda está por ser utilizado. Espero que essas concepções possam causar em você, impacto semelhante que causaram em mim quando delas tomei conhecimento.

Essa a abordagem teórica tem dimensões sociocultural e construtivista, também conhecida como co-construtivista, está baseada nas idéias de Mead, Baldwin, Vigotski, Piaget, Bruner e Jaan Valsiner,  entre outros teóricos desse tema. Suas principais características são:

  • adotar uma visão sistêmica e integral corpo-mente, evitando a fragmentação, por meio de fatores ou meras características, para a compreensão dos fenômenos psicológicos;
  • contextualizar o desenvolvimento na sociocultura em seus processos e não somente nos seus resultados;
  • enfatizar a relevância dos processos de construção colaborativa de significados e a sua imbricação (entrelaçamento) com as emoções humanas, em um contexto semiótico, resultando em reflexos tanto para o indivíduo quanto para o social; e
  • conceber o desenvolvimento humano no contexto da atuação conjunta e contínua da canalização cultural, da intencionalidade e da agência [capacidade de autogoverno] da pessoa na construção de sua subjetividade e na sua ação no mundo.
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Lev Vigotski – Um dos fundadores da perspectiva sociocultural

À dimensão cultural é dispensado um especial destaque, pois se considera que a produção simbólica (o uso do idioma, a produção artística etc) fundamenta e constitui o pensamento (Valsiner, 2014, 2016, 2021; Valsiner & van der Veer, 2000; Vigotski, 1934/2001), caracterizando as ações [comportamento intencional] humanas.

As relações sociais se dão em diferentes contextos semióticos (simbólico-culturais em que há trocas e construção de sentidos e significados por meio de idiomas e outras linguagens), que são partilhados entre os integrantes de determinado grupo. Esses ambientes e condições culturais singulares participam da constituição do Sistema de Self (Branco, 2021) em um processo ininterrupto, que se estende ao longo de todo ciclo de vida (Valsiner, 2014, 2016, 2021; Zittoun, 2012).

É importante salientar que, ao enfatizar a dimensão coletiva da constituição da subjetividade em contextos semióticos, a perspectiva sociocultural construtivista não diminui [diferentemente do construcionismo social] o papel do indivíduo como agente ativo na construção, tanto do seu próprio Sistema de Self, quanto do ambiente cultural coletivamente estabelecido (Branco, 2006; Valsiner, 2016).

 

Psicologia Semiótica e Cultural – A experiência humana como um processo

Ainda que a cultura atue como organizadora dos espaços de construção de significados ao longo do tempo, cada pessoa possui possibilidades e certa flexibilidade para conduzir e constituir, de forma intencional e não-intencional, os seus processos de internalização e externalização e de ação no mundo.

A abordagem semiótica e cultural também se interessa pela microgênese dos processos psicológicos e nos processos que estão implicados na ontogênese da motivação, dos sistemas pessoais de valores, das orientações para crenças e objetivos e da percepção consciente das emoções. Além disso, é de suma importância compreender como atuam os processos desenvolvimentais em contextos culturais estruturados específicos e como se constitui o Sistema de Self, em relação aos contextos culturais.

Segundo essa perspectiva, o ser humano se constitui como sujeito de forma interativa e dinâmica, assumindo um papel ativo e participativo nessa construção. Nessas condições, os sujeitos conduzem suas negociações semióticas nas interações com outras pessoas, em variados contextos.

 

A liberdade, a responsabilidade e construção do self como elementos fundamentais

Mesmo em cenários extremos, bastante autoritários e desfavoráveis à plena internalização de sentidos e da negociação de significados, como os descritos nas Teorias de Reprodução Cultural e Violência Simbólica (e.g., Althusser, 1985/2007; Bourdieu, 1989, 1967/1998; Bourdieu & Passeron, 1970/1975), a possibilidade de ação ativa dos sujeitos não é anulada. A noção de reprodução como uma cópia em verdadeira grandeza, entendida como a imagem refletida em um espelho plano, não encontra sustentação teórica sob o ponto de vista sociocultural construtivista no que se refere à construção de significados e à internalização e externalização de crenças e valores.

Não é sem razão que as Teorias de Reprodução Cultural e Violência Simbólica foram superadas, na década de 80, por Teorias da Resistência, tais como a formulada por Giroux (1983, 2001)

Na Psicologia Semiótica e Cultural, os processos de comunicação e metacomunicação ganham particular destaque no contexto das interações sociais. Desempenham um papel central na ontogênese dos valores, os quais são negociados em meio às práticas culturais e ao longo da dinâmica das internalizações e externalizações que promovem a mútua constituição sujeito-sociedade (Valsiner, 2014, 2021).

Aos padrões de interação ocorridos face a face ainda podem ser acrescidos todos os que, utilizando-se dos meios de comunicação tecnologicamente disponíveis, estabeleçam momentos específicos de contato entre seres humanos e/ou sua produção simbólica.

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Jaan Valsiner – Pioneiro da Psicologia Semiótica e Cultural

A metacomunicação, compreendida como um modulador da comunicação, assume um papel preponderante na constituição da dimensão motivacional. Refere-se às mensagens inseridas sobre o próprio processo de comunicação, presentes nas interações e que permeiam as relações humanas (e.g., Branco & Valsiner, 2004, 2012; Valsiner, 2016). Assume um papel essencial na medida em que contextualiza e direciona a interpretação dos significados construídos colaborativamente nos processos de comunicação que se dão nas interações sociais, colaborando, assim, de forma fundamental, para o desenvolvimento do self e da qualidade das interações e relações humanas (Freire & Branco, 2016).

Por meio do estudo das interações sociais e processos comunicativos, é possível, portanto, entender que nível de liberdade e responsabilidade cada sujeito pode alcançar em determinados contextos culturalmente estruturados.

É possível, também, compreender como o sujeito se desenvolve de forma contínua e dinâmica como pessoa a partir de um referencial alternativo, muito mais amplo e avançado para o conceito de “personalidade”, conhecido como Sistema de Self Dialógico (Branco et. al, 2020; Branco, 2021).

No caso da promoção da autonomia e da participação humana, esse aspecto é fundamental para que se analise a regulação das práticas sociais por valores que promovam a competição e o individualismo frente à possibilidade de ações protagônicas na direção contrária a esses valores. Esse protagonismo exige uma disposição cooperativa e de colaboração entre todos os envolvidos, tendo em vista a transformação ou mudança criativa de aspectos da sociocultura que se deseja superar.

 

Como posso conhecer mais sobre a Psicologia Semiótica e Cultural?

Para conhecer sobre a Psicologia Semiótica e Cultural e sobre a trajetória acadêmica e a história de vida de Jaan Valsiner, recomendo a leitura dos seguintes livros que sintetizam o trabalho de dezenas de pesquisadores durante mais de 30 anos:

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Valsiner, J. (1998). The guided mind: A sociogenetic approach to personality. Harvard University Press.

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Valsiner, J. (2007). Culture in minds and societies: Foundations of cultural psychology. SAGE Publications India.

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Valsiner, J., & Rosa, A. (Eds.). (2007). The Cambridge handbook of sociocultural psychology. Cambridge University Press.

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Branco, A. U., & Valsiner, J. E. (2012). Cultural psychology of human values. IAP Information Age Publishing.

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Valsiner, J. (2014). An invitation to cultural psychology. Sage.

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Valsiner, J., Marsico, G., Chaudhary, N., Sato, T., & Dazzani, V. (2016). Psychology as the science of human being. The Yokohama Manifesto, 129-147.

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Lopes-de-Oliveira, M. C. S., Branco, A. U., & Freire, S. F. D. C. (Eds.). (2020). Psychology as a Dialogical Science: Self and Culture Mutual Development. Springer International Publishing.

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Wagoner, B., Christensen, B. A., & Demuth, C. (Eds.). (2021). Culture as process: A tribute to Jaan Valsiner. Springer.

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Valsiner, J. (2021). General Human Psychology. Springer Nature.

Boa leitura. 

Um abraço

Sergio Senna

Artigo original publicado em junho de 2011. Revisado e ampliado em março de 2022.

Link para a página do Dr. Valsiner

Referências

Althusser, L. (2007). Aparelhos ideológicos de estado: Nota sobre os aparelhos ideológicos de estado. (W. J. Evangelista & M.L.V de Castro, Trad.) Rio de Janeiro: Graal. (Obra original publicada em 1985).

Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. (F. Tomaz, Trad.) Lisboa: Difel. (Obra original publicada em 1989).

Bourdieu, P. (1998). Economia das trocas simbólicas. (S. Miceli, Trad.) São Paulo: Perspectiva. (Obra original publicada em 1967).

Bourdieu, P. & Passeron, J. C. (1975). A reprodução. (R. Bairão, Trad.) Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Obra original publicada em 1970).

Branco, A. U. (2006). Crenças e práticas culturais: co-construção e ontogênese de valores sociais. Revista Pro-Posicoes, 17, 139-155.

Branco, A. U. (2018). Values, education and human development: the major role of social interactions’ quality within classroom cultural contexts. In Alterity, Values, and Socialization (pp. 31-50). Springer, Cham.

Branco, A. U., Freire, S. F., & Roncancio-Moreno, M. (2020). Dialogical self system development: The co-onstruction of dynamic self positions along the life-course. In M. C. Lopes-de-Oliveira, A. U. Branco, & S. F. Freire (Eds.), Psychology as a dialogical science: Self and culture mutual development (pp. 53–72). Springer.

Branco, A.U. (2021). Hypergeneralized Affective-Semiotic Fields: The Generative Power of a Construct. In Wagoner, B., Christensen, B.A., Demuth, C. (Eds.), Culture as Process: tribute to Jaan Valsiner (pp. 143-152). Cham: Springer

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Pires, S. F. S., & Branco, A. U. (2007). Protagonismo infantil: co-construindo significados em meio às práticas sociais. Paidéia (Ribeirão Preto), 17(38), 311-320.

Pires, S. F. S., & Branco, A. U. (2008). Cultura, self e autonomia: bases para o protagonismo infantil. Psicologia: teoria e pesquisa, 24, 415-421.

Valsiner, J. (2000). Culture and human development: An introduction. London: Sage.

Valsiner, J. (2014). An invitation to cultural psychology. Sage.

Valsiner, J. (2016). Fundamentos da psicologia cultural: mundos da mente, mundos da vida. Artmed Editora.

Vigotski, L. S. (2001). A construção do pensamento e da linguagem. (P. Bezerra, Trad.) São Paulo: Martins Fontes. (Obra original publicada em 1934).

Wagoner, B., Christensen, B. A., & Demuth, C. (Eds.). (2021). Culture as process: A tribute to Jaan Valsiner. Springer.

Watzlawick P., Beavin, J. H. & Jackson, D. D. (1967). Pragmatics of human communication. New York: Norton.

Wertsch, J. V. (1991). Voices of mind. Cambridge: Harvard University Press.

Wertsch, J. V. (2021). The Trajectory of Jaan Valsiner’s Thought. In Culture as Process (pp. 71-76). Springer, Cham

Zittoun, T. (2012). Life-course: A socio-cultural perspective. In Handbook of culture and psychology (Vol. 60, No. 23, pp. 513-535). Oxford University Press.

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