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Cultura, Self e Autonomia: bases para o compreender o comportamento intencional

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Tempo de leitura: 9 min.

Muitos estudos científicos sobre os aspectos psicológicos do comportamento humano desvelam aspectos e processos fundamentais para a compreensão da construção de significados e das práticas sociais a nós relacionadas. Entender a cultura, self e autonomia é fundamental para o compreender o comportamento intencional dos seres humanos.

Nesse contexto, é necessário destacar como o ser humano vem lidando a autonomia e a conquista de uma efetiva participação nos processos coletivos do dia-a-dia. Para tanto, se faz necessário realizar uma análise minuciosa e sistêmica dos processos envolvidos (Branco, 2003, 2006; Valsiner, 2012, 2014, 2021).

Além disso, a investigação acerca dos diversos processos de regulação social que são exercidos sobre nós se constitui em importante elemento para o entendimento mais amplo de questões referentes à autonomia e à participação social.

Necessariamente, nossa argumentação se apoiará em contribuições de diversos campos do saber como a História, a Sociologia, a Antropologia, o Direito e, principalmente da Psicologia, pois, de outra forma, não seria possível tratar com as diversas dimensões que são relevantes para a compreensão dos aspectos psicológicos do desenvolvimento humano.

Pretendendo trazer trazer ao debate elementos do contexto sociocultural que influenciam a nossa participação social e como demonstramos nossas intenções, seja por meio da linguagem verbal, seja na utilização das diferentes modalidades de comunicação não verbal.

 

O que é cultura?

No que diz respeito à cultura, a utilização de símbolos pré-existentes para a comunicação humana [e outras formas de expressão cultural], é um tema que foi inicialmente tratado de forma teórica na Antropologia Cultural do início do Séc. XX, e que passou a influenciar o pensamento da Psicologia de forma bastante intensa a partir daí. Sob a ótica da Antropologia, e influenciado por Boaz (1941), Gertz (1987) argumenta que a cultura é uma teia de significados que os seres humanos teceram para si próprios.

Como habitantes dessa cultura, aprendemos pelo menos um idioma que servirá de principal instrumento para orientar o pensamento e as demais funções psicológicas superiores, e que nos permitirá compartilhar e operar uma intensa troca de significados ao longo de toda a nossa trajetória de vida. Sobre isso, Lopes-de-Oliveira e Fernandes (2018) explicam que a trajetória de vida é uma unidade psicológica que estabelece vínculos semióticos coesos entre campos distintos de experiências e acontecimentos ao longo do tempo.

A cultura serve de meio para o fluxo semiótico entre as pessoas. Organiza-se em ecossistemas, conforme a diversas interações e níveis. Temos então a cultura de um País, de um estado, de uma cidade, de uma família e também a cultura pessoal.

Cultura coletiva é o conjunto simbólico que está disponível em determinada parte do ecossistema cultural. Essa disponibilidade se faz por meio das práticas sociais, dos livros, manuais, tradições, lendas, vídeos, histórias e qualquer outro meio em que um conteúdo simbólico possa ser compartilhado.

A cultura pessoal é o resultado da apropriação desses conteúdos coletivos pelo indivíduo. É uma versão pessoal do que está disponível na(s) parte(s) do ecossistema cultural de que esse indivíduo faz parte. Não é uma cópia e sim uma versão do que lhe é ensinado ou do que toma conhecimento. Essas versões também são influenciadas por outras pessoas [culturas pessoais], já que aprendemos por meio da interação. Uma lenda, por exemplo, é contada por alguém…. Nessas interações vamos aprendendo e nos constituindo como sujeitos.

Não há como entender profundamente o comportamento humano sem as interações . É por esse motivo que o modelos analíticos fatoriais conseguem uma aproximação, mas deixam a desejar quando analiticamente isolam o sujeito das interações na esperança de evitar interferências indesejáveis.

 

O que Self?

Essa palavra vem sendo modernamente usada em lugar do conceito de personalidade, sujeito e subjetividade. É um conceito complexo que explica, de formas variadas conforme a teoria de self específica, como a pessoa se constitui, como seus processos psicológicos se articulam e como essa pessoa se apresenta e interage no mundo. É, portanto, uma forma muito mais integrada, processual e relacional para entendermos a ação dos seres humanos ao longo de suas vidas.

Um exemplo de teoria de self é a Teoria do Self Dialógico. Freire e Branco (2016, p.1) assim explicam o Self Dialógico:

O termo self refere-se, em português, à pessoa, ao eu, a si próprio. Como categoria psicológica, é utilizado no sentido de identidade, personalidade, ego. É também considerado uma categoria reflexiva referente a si mesmo: o prefixo auto em: autoestima, autoconceito, autoconfiança, autoimagem e autodeterminação. Indica a unidade da psique humana que permite que o eu possa falar de mim, conduzir minha ação e relacionar-se com o que é meu. É o que permite à pessoa situar-se em diferentes contextos vividos e nas interações interpessoais. [..] Por isso, a função comunicativa da linguagem é tão importante, como componente essencial para a constituição do self e como recurso para a análise e a interpretação dos processos psíquicos. Por meio das interações comunicativas,em especial, na narrativa, as relações entre o eu, o mim e o meu se materializam em forma de posicionamentos. A partir do significado afetivo das experiências ao longo da vida desde a infância e das posições sociais assumidas ao longo do tempo, os posicionamentos

 participam de forma relativamente estável das dinâmicas das relações da pessoa com o seu meio e consigo mesma. [grifos nossos]

E prosseguem na explicação sobre o início da formulação por Hubert Hermans na década de 90 (Freire e Branco, 2016, p.

Assim, a Teoria do Self Dialógico emergiu na década de 1990 e consolidou a abordagem do self em uma perspectiva relacional, dialógica e dinâmica. A entrada no circuito de produções internacionais e a diversidade de trabalhos na linha do self dialógico, no entanto, diversificaram e propuseram desafios teóricos, bem como questões epistemológicas e metodológicas a partir dos anos 2000. Muitos destacaram as múltiplas perspectivas culturais que desencadearam reformulações e ampliações, como os estudos deSunil Bhatia (Bhatia & Ram, 2001), Shui Fiona Chan (Chan, Ho, Peng,& Ng, 2001), Nandita Chaudhary (2003; Chaudhary & Sriram, 2001), Miguel Gonçalves e João Salgado (2001; Salgado, 2006) e Jaan Valsiner

 (2001, 2007), dentre outros(Hermans& Damaggio, 2007). [grifos nossos]

Essa é, portanto, a uma maneira de entendermos profundamente os comportamentos na integralidade das razões, dos processos e  das circunstâncias que lhes origem e sentido.

 

O que é autonomia?

Autonomia ou agência, é a capacidade humana de autogoverno ou autodeterminação. 

cultura-autonomia

Há alguns anos, eu e a Dr. Angela Branco (Pires e Branco, 2008) escrevemos um texto explicando da seguinte forma:

Para Piaget (1932/1994), a autonomia representa a condição alcançada pela criança em desenvolvimento quando esta considera os vários fatores relacionados à intencionalidade, à dimensão da responsabilidade social e à independência do julgamento moral, antes heterônomo. O conceito, portanto, encontra-se intimamente ligado à questão da moralidade (consideração e respeito à alteridade), bem como à questão da iniciativa de ação associada à relativa independência na avaliação do que seja certo ou errado em determinado contexto. […] Uma das abordagens mais valorizadas pela comunidade científica é a de Kohlberg (1981), que amplia as contribuições de Piaget sobre a questão. De origem cognitivo-estruturalista, a proposta de Kolhberg rejeita o relativismo ético e baseia-se em princípios morais universais, sendo que a justiça é o critério principal de regulação moral. Enfatiza o componente cognitivo da moralidade, o raciocínio moral, e estabelece uma hierarquização composta por de seis níveis de moralidade: dois categorizados como típicos do estágio pré-convencional, dois do convencional e dois do pós-convencional. Um dos avanços oferecidos por essa proposta é a assincronia entre os estágios e a idade cronológica.

Embora o mérito da teoria cognitiva do desenvolvimento moral seja incontestável, seus críticos apontam aspectos controversos: (1) a universalidade dos estágios morais; (2) a falta de consideração da influência do contexto sociocultural; e (3) não levar em conta a afetividade nos processos de significação relacionados à moralidade. As críticas indicam, assim, as limitações do modelo cognitivo-estruturalista, limitações essas que abordagens socioculturais procuram superar (Shweder & Much, 1987). A perspectiva sociocultural construtivista critica, sobretudo, a desconsideração das teorias baseadas no raciocínio moral (com seus estágios universais) das relações entre o raciocínio moral (cognição) e as vivências afetivas dos sujeitos, consideradas sob o ponto de vista holístico, e a partir da valorização da diversidade cultural (Cole, 1988, 1992). Uma vez que o estudo da produção dos significados está na base da abordagem, dá-se importância aos aspectos que articulam a comunicação humana praticada em contextos culturais específicos para a compreensão da forma como diversas dimensões se articulam para a configuração e reconfiguração de um sistema simbólico ético-moral.

O enfoque co-construtivista procura compreender o desenvolvimento ético-moral a partir da experiência dos sujeitos. Sob essa ótica, a experiência moral e ética das pessoas se desdobra em diversas dimensões, entre elas: (1) cognitiva; (2) afetiva; (3) intencionalidade. É na articulação dessas dimensões, entre outras, quando entendidas a partir dos próprios referenciais culturais do sujeito e ligadas aos seus processos de mediação simbólica, que se pode chegar a alguma conclusão a respeito do desenvolvimento moral (Branco, 2006).

[…] Um aspecto teórico importante a ser destacado no estudo do caráter sociogenético da moralidade relaciona-se à ontogênese das crenças e valores. Quando um ser humano nasce, encontra uma cultura coletiva cuja configuração é dinâmica, mas cujos conteúdos se sustentam em bases históricas e afetivas, em termos de valores, padrões típicos de relacionamento e referenciais interpretativos. A anterioridade dos padrões culturais, no entanto, não garante nenhum determinismo, visto que a canalização cultural atua de forma simultânea com a indeterminação, que está na matriz da emergência de novos padrões, crenças e valores nos contextos específicos (Branco, 2006; Madureira & Branco, 2005; Valsiner, 1987, 2007). Coerentemente com os princípios da canalização cultural, tanto fortes sugestões culturais quanto indeterminismos colaboram para configuração de um sem número de subjetividades diferentes (Fogel, Lyra & Valsiner, 1997). A canalização cultural é, portanto, um dos processos mais importantes na sociogênese de crenças e valores, porém ela não é fator determinante das características e do curso da vida dos seres humanos.

A partir dessa explicação, e de estudos mais recentes (e.g. Budwig, 2021; Martin, 2010; Gruber et.al., 2014; Valsiner, 2021), vemos que a autonomia é exercida pelo sujeito como resultado do seu desenvolvimento e das suas capacidades de abstração e de distanciamento, o que nos proporcionam a possibilidade de pensarmos as nossas ações como se fôssemos terceiras pessoas.

O desenvolvimento da autonomia é importantíssimo para a promoção de um fator protetivo essencial contra manipulações e para desenvolver a efetiva participação social de cada um de nós.

 

Conclusão – Cultura, self e automonia

A discussão abordou aspectos como autonomia, desenvolvimento moral, responsabilidade social, crenças, valores, práticas culturais e motivação, na qualidade de importantes dimensões para a compreensão do desenvolvimento humano e suas influências no que podemos observar das pessoas.

Convido você a acompanhar nossos artigos que o ajudarão a entender um pouco mais sobre o maravilhoso campo do desenvolvimento humano, onde a comunicação, verbal e não verbal, é fundamental para a nossa construção como humanos. Espero que você tenha gostado de nossa explicação sobre cultura, self e autonomia.

Um abraço

Sergio Senna

Conheça a página do Dr. Valsiner

 

Referências

Bhatia, S., & Ram, A. (2001). Locating the dialogical self in the age of transnational migrations, border crossing and diasporas. Culture & Psychology, 7(3), 297-309.

Branco, A. U. (2003). Social development in social contexts: Cooperative and competitive interation patterns in peer interactions. Em J. Valsiner & K. J. Conolly (Orgs.). Handbook of developmental psychology (pp. 238-256). London: Sage.

Branco, A. U. (2006). Crenças e práticas culturais: co-construção e ontogênese de valores sociais. Revista Pro-Posicoes, 17, 139-155.

Budwig, N. (2021). The Dynamics of Agency and Context in Human Development: Holism Revisited. In Culture as Process (pp. 57-69). Springer, Cham.

Chan, S.F., Ho, D.Y., Peng, S., & Ng, A.K. (2001). The dialogical self: Converging East-West constructions. Culture & Psychology, 7(3), 393-408.

Chaudhary, N. (2003). Speaking the self into becoming? Culture & Psychology, 9(4), 471-486.

Chaudhary, N., & Sriram, S. (2001). Dialogues of the self. Culture & Psychology, 7(3), 379-392.

Fogel, A., Lyra, M. & Valsiner, J. (1997). Dynamics and indeterminism in developmental and social processes Hillsdale: Lawrence Erlbaum.

Freire, S. F. D. C. D., & Branco, A. U. (2016). A teoria do self dialógico em perspectiva. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 32, 25-33.

Gonçalves, M.,& Salgado, J. (2001). Mapping the multiplicity of the self. Culture & Psychology, 7(3), 367-377.

Gruber, C. W., Clark, M. G., Klempe, S. H., & Valsiner, J. (Eds.). (2014). Constraints of agency: Explorations of theory in everyday life (Vol. 12). Springer.

Hermans, H.J.M., & Dimaggio, G. (2007). Self, identity, and globalization in times of uncertainty: A dialogical analysis. Review of General Psychology, 11, 31-61.

Kohlberg, L. (1981). Essays on moral development Vol 1: The philosophy of moral development New York: Harper & Row.

Madureira, A. F. A. & Branco, A. U. (2005). Construindo com o outro: uma perspectiva sociocultural construtivista do desenvolvimento humano. Em M. A. Dessen & A. L. Costa Júnior (Orgs.), A ciência do desenvolvimento humano: tendências atuais e perspectivas futuras (pp. 90-109). Porto Alegre: Artmed.

Martin, J. (2010). Coordinating with others: Outlining a pragmatic, perspectival psychology of personhood. In J. Martin & M. H. Bickhard (Eds.), The new psychology of personhood. New Ideas in Psychology, 28.

Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança (E. Lenardon, Trad.) São Paulo: Summus. (Trabalho original publicado em 1932)

Salgado, J. (2006). Listening to India, listening to ourselves: The place of self in culture. Culture & Psychology, 12(1), 101-113.

Shweder, R. A. & Much, N. C. (1987). Determinations of meaning: Discourse and moral socialization. Em W. M. Kurtines & J. J. Gewirtz (Orgs), Moral development through social interaction (pp. 197-244). New York: Wiley.
Valsiner, J. (1987). Culture and the development of children´s actions New York: Wiley.

Valsiner, J. (1989). Human development and culture: The social nature of personality and its study. Lexington, MA: Lexington Books.

Valsiner, J. (2001). Contemplating self: From India to contemporary self-psychology. Culture & Psychology, 7(1), 115-118.

Valsiner J. (2007). Culture in minds and societies: Foundations of cultural psychology. New Delhi: Sage.

Valsiner, J. (2012). Fundamentos da psicologia cultural: Mundos da mente, mundos da vida. Porto Alegre: Artmed

Valsiner, J. (2014). An invitation to cultural psychology. London: Sage.

Valsiner, J. (2021). Final Conclusions: General Principles of Cultural Personology. In General Human Psychology (pp. 301-313). Springer, Cham.

 


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Como citar este artigo?

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PIRES, Sergio Fernandes Senna. Cultura, Self e Autonomia: bases para o compreender o comportamento intencional. Instituto Brasileiro de Linguagem Emocional. Disponível em < https://ibralc.com.br/cultura-self-e-autonomia-bases-para-o-compreender-o-comportamento-intencional/> . Acesso em 24 Apr 2024.

Formato Documento Eletrônico (APA)

Pires, Sergio Fernandes Senna. (2022). Cultura, Self e Autonomia: bases para o compreender o comportamento intencional. Instituto Brasileiro de Linguagem Emocional. Recuperado em 24 Apr 2024, de https://ibralc.com.br/cultura-self-e-autonomia-bases-para-o-compreender-o-comportamento-intencional/.

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