As controvérsias das emoções básicas ou primárias: o que a ciência diz?

Divulgue e opinie

A pergunta que utilizamos para motivar esse artigo – quais são as controvérsias das emoções básicas? – já foi abordada anteriormente. Mostrei parte do debate sobre esse assunto, cujas críticas mais mordazes aos modelos de emoções básicas são provenientes de uma pesquisadora chamada Lisa Feldman

No artigo intitulado – É fácil e correto reconhecer as emoções pelas expressões faciais?  – introduzi o assunto, mostrando os principais argumentos apresentados por Lisa Feldman, texto que foi mais descritivo e focado nas controvérsoas por ela alimentada.

Agora, tenho a intenção de dar opiniões mais pessoais e, talvez, mais esclarecedoras sobre o tema. Para isso vou dividir a minha argumentação em quatro temas:

  • O narcisismo na ciência;
  • Concorrência na produção científica;
  • Possíveis riscos aos direitos humanos;
  • Existe uma teoria integrativa sobre emoções?

Sem demora, passemos ao primeiro argumento.

 

O narcisismo na ciência

É muito importante que todos entendam que o cientista é uma pessoa, um ser humano como qualquer outro, com desejos, aspirações e ambições. Por mais óbvia que possa parecer essa observação, ela passa despercebida para a maioria de nós…. Assim como ocorre com os atletas, com os professores, com profissionais de saúde e outras profissões, as pessoas, não raras vezes, pensam nessas pessoas de forma romântica, como se apenas estivessem interessadas no avanço da civilização e de nossa espécie. 

a-tentacao-do-desempenho-controversias-das-emocoes-basicas-ibrale-450Por mais meritórias que sejam determinadas profissões, seus integrantes não são todos “santos”. No caso da ciência, existe uma certa dose de narcisismo, principalmente se as pesquisas realizadas por determinada pessoa lhe coloca em um lugar de destaque. Não somente pesquisas recentes tratam desse tema (e.g. Dreyer et al., 2017; Janke, Daumiller & Rudert, 2019; Lemaitre, 2017) , mas a nossa prática acadêmica pessoal serve como elemento de convicção sobre uma prevalência narcisista no meio acadêmico.

Sob certo ponto de vista, é natural esperar esse resultado, já que pessoas muito inteligentes buscam valorizar os seus achados. Então, muito do conhecimento científico hoje produzido está envolto em meio a esse narcisismo. Outra consequência desse fenômeno, é que, depois de passar décadas estudando algum assunto, o pesquisador, de forma geral, morrerá na trincheira defendendo os seus pontos de vista…..

Por outro lado, algumas pessoas utilizarão a sua inteligência e os seus talentos para “destruir” a reputação e o trabalho de outros pesquisadores concorrentes…. Pois também se cresce na ciência com esse comportamento.  O que veremos no próximo tópico.

 

A concorrência na produção científica

emocoes-basicas-sao-polemicas-ibraleUm dos aspectos [não explícitos] mais interessantes na produção científica é a questão da concorrência. Alguns estudos vêm tratando do assunto (e.g. Waaijer et al., 2019; Ruffini, 2020) Ela existe entre pessoas, entre instituições e entre grupos de pesquisa. Está intimamente relacionada ao nosso primeiro tópico [o narcisismo]. Não é o caso geral na pesquisa brasileira, pois, com raras e honrosas exceções, nenhum cientista ficará abastado com o resultado de suas pesquisas.

Entretanto, existem contextos internacionais nos quais alguém pode enriquecer  com as bolsas, prêmios, venda de livros e de métodos…. Cheguei a tratar desse assunto no artigo – Tríade Sombria (Dark Triad), o que não te contaram? . Naquele artigo, indiquei a minha curiosidade sobre a elevada quantidade [90] de artigos científicos de um determinado pesquisador sobre um único assunto, fora outros que não tratavam do tema específico…… Dificilmente alguém consegue uma produtividade tão elevada em um único tema…..

Então, essa concorrência pode levar a comportamentos, eticamente disfarçados, como questionamentos aos métodos, aos resultados e às pesquisas realizadas por outro pesquisador. Entretanto, o objetivo encoberto é desqualificar o conhecimento que foi produzido pelo concorrente. Não vou me estender nesse tópico, pois tudo me parece óbvio, já que esses comportamentos já foram estudados nas atividades comerciais. A ciência de alta performance não é muito diferente do comércio….

 

Possíveis riscos aos direitos humanos. Controvérsias das emoções básicas?

Até o momento tratei de fenômenos que venho observando em relação ao comportamento científico como um todo. Chegou a hora de levantar alguns aspectos mais específicos em relação à produção científica relacionada com as emoções.

Tenho mostrado preocupação com esse tema. Recentemente escrevi – Os riscos da pseudociência na justiça e na segurança pública

Resumidamente:

Em 2020, 51 autores (Denault et al., 2020)  se reuniram para realizar um levantamento sobre esses riscos da pseudociência e redigiram um relatório. Em minha opinião, esse estudo também serve de manifesto sobre o cuidado que devemos ter quando a difusão de estudos científicos e quanto à apropriação equivocada dos seus resultados na aplicação prática. Sobre isso, venho há mais de uma década me dedicando à explicação dos mitos que foram surgindo e que tiveram a sua origem em estudo científicos.

Nesse trabalho, os 51 autores explicam que , para profissionais de segurança pública e justiça (por exemplo, policiais, advogados, juízes), os milhares de artigos revisados ​​por pares sobre comunicação não verbal representam importantes fontes de conhecimento. No entanto, apesar da abrangência do trabalho científico realizado sobre o assunto, os profissionais podem recorrer a programas, métodos e abordagens que não refletem o estado da ciência.

Nos últimos anos, houve um grande interesse das forças de segurança pela possibilidade de automação do reconhecimento de emoções, já que uma das respostas emocionais é a “tendência de ação“. Uma emoção motiva para fazer ou deixar de fazer algo….. Para algumas pessoas, isso significa que, ao identificar uma emoção, seria possível conseguir alguma previsibilidade do comportamento. Para forças de segurança essa seria a entrada teórica para a prevenção aos delitos – o pré-crime

Nesse contexto, algumas teorias são mais “fáceis” de automatizar do que outras…. Já tratei desse assunto, anteriormente, no artigo: Como fica a automação do reconhecimento de emoções?. Sucintamente, minha argumentação é a seguinte:

Provavelmente uma teoria integrativa sobre emoções será bastante complexa e mais difícil de ser automatizada, considerados os avanços tecnológicos atuais. Nesse contexto, as Teorias de Emoções Básicas e as Teorias Dimensionais são as mais fáceis de serem automatizadas e podem ser usadas em protótipos ou modelos teóricos.

Entretanto, o cientista de dados, engenheiro de computação e outros profissionais que tenham interesse nesse assunto têm que estar cientes de que, ao apropriar-se dessas teorias, está automatizando as respostas emocionais a elas associadas como anteriormente explicado. Reconhecendo essas limitações e divulgando o que os sistemas iniciais realmente são capazes de realizar, imagino que a pesquisa possa avançar a passos largos.

O grande problema é, que uma elemento relacionado aos nossos dois tópicos anteriores, o narcisismo e a concorrência, induzem os cientistas a “venderem o seu peixe” como se ele fosse único, verdadeiro e definitivo…. 

Entretanto, reconhecer que o conhecimento é acumulativo, provisório e fragmentado, é fundamental para o avanço da ciência.

Então, esse desejo de prever o comportamento, apresentado por determinadas organizações [governos, redes sociais etc] pode estar na raiz da reação tão desproporcional que se observa em relação às Teorias de Emoções Básicas e Dimensionais. É uma hipótese que eu sempre mantenho em mente ao testemunhar esses embates que, não raras vezes, vão bem além do questionamento acadêmico.

No caso dos trabalhos produzidos pelo Dr. Paul Ekman, esse risco é realmente bem elevado, já que, além de ser uma Teoria de Emoções Básicas, foi desenvolvido um “sistema de descrição da ação facial” [FACS] ao qual, posteriormente, se elevou a um suposto sistema interpretativo [EMFACS]. Sobre isso, desenvolvi algumas ideias no artigo – FACS Certified Coder: O que é isso?.   Veja o tópico: o que você pode efetivamente fazer com o FACS?

Então, é realmente necessário reconhecer que a mera automação de teorias de emoções básicas e de um suposto sistema de reconhecimento de emoções possa representar uma ameaça potencial aos direitos fundamentais, seja em relação à privacidade a que todos temos direito, seja no tocante a possíveis tentativas de manipulação  do comportamento a partir de sua previsibilidade por meio do reconhecimento das emoções.

As críticas ferrenhas que vemos podem ter essa origem. No que diz respeito aos cientistas bem intencionados, a sua preocupação com as possíveis violações dos direitos humanos pode ser a razão.

No caso dos nem tão bonzinhos assim, a sua oculta vontade de ocupar o espaço dos que saíram na frente pode estar na base dos questionamentos…… Sobre isso, veja um artigo que procura explicar o comportamento antiético [na ciência também existe isso] – Aptos para serem antiéticos: a psicopatia funcional

Além disso, esses assuntos não aparecem em debates abertos e, provavelmente, receberei críticas por expor esses temas. Entretanto, são exatamente os “não ditos” e encobertos que podem nos levar ao avanço da compreensão que necessitamos no tema.

A ciência sempre pode ser utilizada como argumento de autoridade…. Em regimes totalitários é assim.

 

Existe uma teoria integrativa sobre emoções?

A pergunta de um milhão de dólares é: haverá tal teoria no curto ou médio prazos?  A resposta parece ser negativa, apesar dos grandes esforços de alguns. Tenho orgulho de pertencer a um grupo coeso de psicólogos pesquisadores que busca incessantemente  por uma teoria integrativa sobre emoções.

O principal problema que nos impede de avançar mais rápido são os aspectos não-conscientes das emoções, já que ainda não há metodologia desenvolvida que nos permita acesso a essa importante parte do fenômeno emocional como um todo. Daí vemos que existes as controvérsias das emoções básicas….

Espero ter levantado aspectos relevantes ao debate sobre as razões de tantos ataques recentes às Teorias de Emoções Básicas e aos seus autores.

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Toda terça-feira, um tópico sobre educação socioemocional, linguagem corporal e emoções.

Referências

Denault, V., Plusquellec, P., Jupe, L. M., St-Yves, M., Dunbar, N. E., Hartwig, M., Sporer, S. L., Rioux-Turcotte, J., Jarry, J., Walsh, D., Otgaar, H., Viziteu, A., Talwar, V., Keatley, D. A., Blandón-Gitlin, I., Townson, C., Deslauriers-Varin, N., Lilienfeld, S. O., Patterson, M. L., . . . van Koppen, P. J. (2020). The analysis of nonverbal communication: The dangers of pseudoscience in security and justice contexts. Anuario de Psicología Jurídica, 30(1), 1–12.

Dreyer, M., Chefneux, L., Goldberg, A., Heimburg, J. V., Patrignani, N., Schofield, M., & Shilling, C. (2017). Responsible innovation: A complementary view from industry with proposals for bridging different perspectives. Sustainability9(10), 1719.

Janke, S., Daumiller, M., & Rudert, S. C. (2019). Dark pathways to achievement in science: Researchers’ achievement goals predict engagement in questionable research practices. Social psychological and personality science10(6), 783-791.

Lemaitre, B. (2017). Science, narcissism and the quest for visibility. The FEBS journal284(6), 875-882.

Ruffini, P. B. (2020). Collaboration and competition: the twofold logic of science diplomacy. The Hague Journal of Diplomacy15(3), 371-382.

Waaijer, C. J., Teelken, C., Wouters, P. F., & van der Weijden, I. (2018). Competition in science: Links between publication pressure, grant pressure and the academic job market. Higher education policy31(2), 225-243.

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