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O assédio como expressão violenta dos desejos e das decisões humanas no ambiente acadêmico

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Tempo de leitura: 16 min.

Esse artigo foi especialmente escrito para registrar e detalhar os elementos teóricos a serem apesentados na palestra sobre assédio no ambiente acadêmico a ser realizada na Semana Pedagógica do Centro de Universitário de Brasília, em 21 de julho de 2023.

 

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Introdução

Tratar sobre violência e o assédio nunca é uma tarefa fácil. É um tema diante do qual contemplamos em maior medida a nossa própria ignorância mais do que a nossa compreensão sobre um fenômeno tão diversificado. Entretanto, essa dificuldade não deve ser elemento desmotivador para experimentarmos uma aproximação teórica sistêmica e integral, ainda que parcial, direcionada para a inteligibilidade do assunto.

Para perseguirmos esse objetivo sob a ênfase socioemocional, faremos uma apresentação sobre os elementos comuns de diversas definições de violência que se mostram funcionais para a compreensão do fenômeno e para o seu enfrentamento integral. Além disso, explicaremos como uma boa parte das ações violentas estão relacionadas ao processo decisório humano e promoveremos uma breve reflexão sobre alguns dos principais desdobramentos práticos no ambiente acadêmico. Iniciaremos pela explicação sobre a necessidade da realização de uma abordagem sistêmica e integral para o enfrentamento a qualquer tipo de violência e de assédio.

 

A necessidade de uma abordagem sistêmica e integral para a compreensão da violência no comportamento humano

Para uma compreensão mais aprofundada do fenômeno complexo da violência, é importante adotarmos uma abordagem sistêmica e integral do tema, evitando a mera fragmentação, por meio de fatores ou características, para a compreensão dos fenômenos biopsicológicos (VALSINER, 2021) subjacentes. Também é relevante contextualizarmos a interação violenta na sociocultura, em seus antecedentes, processos e não somente nos seus resultados. Nessa direção, enfatizamos a relevância dos processos de construção colaborativa de significados e o seu profundo entrelaçamento com as emoções humanas, em um contexto semiótico e social, que resulta em reflexos tanto para o indivíduo quanto para o coletivo. Essa construção está na raiz dos conflitos e dos desejos que antecedem as manifestações violentas.

Outro esforço teórico que deve ser realizado é no sentido de conceber o desenvolvimento humano no contexto de um ecossistema cultural (XU, WU, LI, 2021) e da atuação conjunta e contínua da canalização cultural, da intencionalidade e da agência (capacidade de autogoverno) da pessoa na construção de sua subjetividade e na orientação da sua ação no mundo (PIRES; BRANCO, 2012, 2023a).

Essa perspectiva nos permite uma visão mais abrangente, intra e transpsicológica sobre como a cultura coletiva pode canalizar os processos de internalização de símbolos significativos (GILLESPIE, 2021), em cenários caracterizados por múltiplas possibilidades e perspectivas, incluindo as soluções violentas. Deve-se enfatizar a sociogênese, valorizando a participação ativa e construtiva dos sujeitos em interação e, assim, estabeleceremos um enquadramento para refletirmos sobre como as práticas educacionais e a dinâmica dos posicionamentos dos atores podem vir a promover ou dificultar o desenvolvimento da agência e demais capacidades psicológicas dos envolvidos, ampliando as possibilidades de prover inteligibilidade para a compreensão da violência e do assédio sob os pontos de vista social, individual, cultural e biológico, articuladamente.

Nesse sentido, uma abordagem integral não é aquela que nega a fragmentação da produção do conhecimento, o que é uma consequência dos métodos que utilizamos para conhecer e inerente ao pensamento categorial que sempre será fragmentado. Abordar de forma integral significa articular esses diversos conhecimentos, sem desprezá-los, dentro de uma avaliação sobre quais das abordagens podem mais contribuir para o enfrentamento à violência em determinado contexto específico.

Para o enfrentamento socioemocional à violência e ao assédio no ambiente acadêmico, por exemplo, uma estratégia jurídica, tratando das consequências judiciais e legais sobre o assédio moral, por exemplo, não parece ser a melhor opção, senão que seja articulada, de forma secundária, com orientações de caráter ético, de estímulo à colaboração científica e de desenvolvimento emocional na produção científica.

Então, cada situação recomendará uma composição entre diversas abordagens, o quem nesse trabalho, denominamos de enfrentamento integral e sistêmico. Tomando isso em conta, três aspectos relacionados à violência ganham importância: (1) a efetiva análise das práticas realizadas em determinado ambiente para a compreensão das crenças, valores e emoções que as orientam; (2) a introdução de novas práticas coletivas orientadas aos valores a serem promovidos; (3) a promoção de sugestões culturais, práticas coletivas e de interação entre os sujeitos que eliciem emoções pró-sociais (PIRES; BRANCO, 2023a, 2023b). Vejamos, então, alguns princípios do comportamento humano que são relevantes para que obtenhamos clareza no planejamento dessas ações de enfrentamento.

 

A equifinalidade e a multifinalidade no comportamento humano

A autonomia dos seres humanos, e a forma como nos orientamos por uma composição de critérios cognitivos e emoções para tomar as nossas decisões, estabelece um curioso e complexo sistema de interações intra e transpsicológicas que, se compreendido, pode ajudar em muito ao enfrentamento da violência.

Para isso, alguns princípios provenientes das teorias de sistemas podem nos auxiliar. É o caso da equifinalidade e da multifinalidade. A partir da Teoria Geral dos Sistemas Abertos, Amaral (2016) nos explica que, segundo o princípio da equifinalidade, aplicado ao comportamento humano, o fenômeno observado, apesar de ter aparência semelhante, pode ter processos, antecedentes e causas distintas. O que observamos se mostra, então, como parecido nos seus estados finais ou resultados, mas distinto em suas causas e nos caminhos para chegar à sua aparência perceptível.

Por outro lado, o princípio da multifinalidade nos informa que fenômenos cuja causa, antecedentes e processos sejam muito semelhantes, podem se apresentar de forma distinta em seus estados finais ou resultados.

A conjunção desses dois princípios e a sua aplicação ao comportamento humano nos mostra o quão complexa pode ser a compreensão da violência, que se manifesta de inúmeras maneiras, faltando, até mesmo, adjetivos para classificá-la em toda a sua perversa diversidade. Essa complexidade em relação ao tema faz com que haja uma multiplicação de modelos explicativos em, pelo menos, duas direções bem distintas. Uma delas tenta encontrar uma causa geral e outra que foca em teorizar sobre manifestações específicas da violência. No entanto, o que esses princípios nos ajudam a fazer é procurar um ponto de encontro das trajetórias em que tanto as condições iniciais, quanto os possíveis resultados passam pelo mesmo caminho. Seria possível encontrar tal instância? É o que veremos depois de discorrermos sobre a violência.

 

O que é a violência?

A violência e o assédio (violência recorrente) é uma manifestação comportamental das mais antigas registradas pelos seres humanos. Os atos violentos e até o estudo dos seus efeitos se confundem com a própria existência da humanidade. Como exemplos, temos a “Epopeia de Gilgamesh”, que é a obra literária mais antiga, datada de cerca de 2100 a.C, a abordar a temática da agressividade e violência (DE MEDEIROS; DA SILVA COSTA; DA SILVA, 2023). É uma narrativa da Mesopotâmia, que descreve as aventuras das personagens Gilgamesh e Enkidu, incluindo cenas de batalhas e violência.

No campo científico, a produção mais antiga que se tem conhecimento sobre a agressividade e violência (ALLEN, 2005) é o tratado médico chamado “Papyrus Edwin Smith”, que remonta ao Egito Antigo por volta de 1600 a.C. Esse texto contém descrições detalhadas de várias lesões traumáticas, incluindo ferimentos de guerra, e descreve diferentes formas de tratamento para tais lesões. Muito embora não seja especificamente uma obra científica dedicada ao estudo da agressividade e da violência em si, é uma das primeiras evidências escritas que aborda o tema de forma sistemática e documentada.

Retrocedendo ainda mais, à pré-história, no Brasil, Silva e Cisneiros (2013) levantaram cenas de violência humana nas pinturas rupestres da área arqueológica da Serra da Capivara, no Piauí. Na medida de tempo usada na Antropologia, os grafismos rupestres dessa importante região brasileira datam de 12 a 6 mil anos antes do presente, o que nos serve de indicador sobre a ocorrência dos comportamentos violentos desde os mais primitivos registros das atividades humanas.

Com o passar dos séculos e ao longo do estudo acadêmico sobre a violência, conceitos foram sendo criados e questionamentos foram aparecendo sobre a necessidade uma abordagem mais ampla que enquadrasse diferentes dimensões do contexto humano. Definições clássicas de violência como, por exemplo, a proposta por Michauld (1989), que a define pelas as ações diretas ou indiretas destinadas a limitar, ferir ou destruir pessoas ou bens é criticada por reduzir o significado da violência e não abranger outras dimensões, tais como a moral e a noética (MINAYO; PINTO; SILVA, 2022).

Ao longo do tempo, houve uma ampliação do entendimento sobre a abrangência da violência, reconceitualizando-a para incluir eventos que antes eram considerados práticas culturais cotidianas. Essa mudança levou em conta a natureza dos danos causados, sejam eles físicos, emocionais, morais ou espirituais, iniciando-se uma multiplicação de definições de violência sob o ponto de vista dos efeitos que poderiam causar.

Essa multiplicidade de definições adjetivadas da violência, embora útil para a tipificação penal ou para diagnósticos clínicos, não contribui, necessariamente, para a eficácia dos programas e projetos para o seu enfrentamento. Não se questiona, portanto, a funcionalidade da fragmentação em modalidades, mas sim defende-se a necessidade da convivência e articulação entre diversas definições funcionais e suas respectivas e decorrentes abordagens para o enfrentamento à violência, cada uma útil para uma fase das ações, sejam jurídicas, sejam clínicas, sejam educacionais ou socioemocionais.

Então, um passo importante no objetivo de articularmos diversas abordagens para o enfrentamento à violência é levantarmos os elementos comuns às suas diversas definições. Vejamos, então, um resumo não exaustivo produzido a partir da síntese de diversos estudos que contém definições tradicionais de violência (e.g. MINAYO; SOUZA, 1993, 2003; KRUG et.al, 2002; MINAYO, 2006). A violência engloba:

  • Manifestações de: (1) desejos; (2) decisões; concepções pessoais;
  • Expressões: (1) comportamentos; (2) ações; (3) omissões;
  • Agentes: (1) pessoas; (2) grupos; (3) sistemas cibernéticos digitais;
  • Pacientes[1]: (1) pessoas; (2) grupos de pessoas; (3) seres; (4) ambientes;
  • Relação agente/paciente: (1) assimetria elevada;
  • Outras características: (1) pressupõe imposição das decisões, desejos ou concepções; (2) desrespeita normas, incluindo informais ou princípios fundamentais; (3) as modalidades adjetivas da violência;
  • Consequências: (1) pode gerar dano[2].

Esses são os elementos iniciais que podemos levantar a partir de muitas das definições, como as exemplificadas acima, e que nos resumem o que podemos denominar de seu núcleo comum. Tomando isso em conta, uma boa estratégia para lidar com a violência de forma geral é considerá-la, em uma multiplicidade de situações, o resultado da expressão de um processo decisório baseado em crenças, valores e emoções, de forma integrada.

Então, sob esse ponto de vista e sinteticamente, podemos definir a violência:

Como as formas comportamentais de expressão que pessoas, grupos ou sistemas cibernéticos digitais utilizam na tentativa de impor, assimetricamente, as suas decisões sobre outros, à revelia das convenções sociais, da legislação ou de valores universais, podendo causar algum tipo de dano individual ou coletivo. (PIRES, 2023a, p. 8031)

Essa visão, aparentemente mais simples e superficial, nos apresenta a vantagem de mergulharmos em um dos elementos comuns da violência, que são as decisões humanas ou dos sistemas cibernéticos digitais como representantes dos humanos. Isso nos oferece uma alternativa provisória, mas promissora, para responder à pergunta sobre a existência de uma causa geral para a violência – a decisão humana em expressar as suas vontades de forma assimétrica, desrespeitosa a convenções coletivas e despreocupada com os seus efeitos e com danos que possa causar.

Sob o ponto de vista individual e da construção de significados, como reguladores desses processos estão a liberdade e a responsabilidade como valores interdependentes e proporcionais. Quanto maior a liberdade, maior deve ser a responsabilidade na regulação das decisões. Então, a responsabilidade aumenta quando as pessoas são incentivadas a refletir sobre suas decisões e a maneira como expressam seus desejos.

Mantendo esse enquadramento teórico em mente, há que se refletir sobre a violência e o assédio como a expressão da decisão humana, não apenas sob o ponto de vista cognitivo, do processamento da informação ou da avaliação de custos e benefícios. É importante trazer ao primeiro plano o papel de certas emoções que estão na raiz dos três principais elementos da expressão da violência: (1) a assimetria entre os envolvidos; (2) o desrespeito às convenções formais, informais ou a valores universais; e (3) a despreocupação com produção de algum dano. É o que veremos a seguir.

 

O que são emoções?

Antes de detalharmos o papel das emoções no contexto na tomada de decisões por linhas de ação violentas, é necessário explicitar que é um tema bastante polêmico e extremamente complexo. Quanto mais complexo é um fenômeno, mais difícil é defini-lo pelo simples fato de que nossa linguagem é categorial e o melhor que podemos fazer é expressarmos os componentes em partes e por meio das relações sintáticas entre as palavras, descrever as relações que desejamos destacar.

Essa é uma das dificuldades em definir qualquer coisa. Como, por vezes, não há como mencionar todas as suas partes, até porque algumas são inacessíveis aos métodos científicos atuais, nossas aproximações acabam incompletas. Essa é uma das origens das discordâncias epistemológicas quando analisamos definições. No caso das emoções não ocorre de forma diferente.

Orientados por essas premissas, vejamos a seguinte definição de emoção como apresentam a seguinte proposta para definir emoções:

Uma definição consensual que emerge de uma análise da literatura é a seguinte: uma emoção é um ‘processo rápido, de duas etapas, focado no evento, que consiste em (1) mecanismos de eliciação de emoções baseados em relevância que (2) moldam uma multiplicidade de respostas emocionais (ou seja, tendência à ação, reação automática, expressão e sentimento)’. (COPPIN; SANDER, 2021, p.8)

Eles são da opinião que uma boa forma de compreender esse complexo fenômeno é encara-lo como multicomponente, que envolve diversos processos e funções biopsicológicas como a memória, a percepção, a cognição, o uso da linguagem etc. Assim argumentam:

As três principais [famílias de] teorias sobre emoções – emoções básicas, dimensional e avaliação – todas descrevem a emoção como um fenômeno com múltiplos componentes (isso não é uma ideia nova; ver, por exemplo, Irons, 1897). Essa perspectiva, tipicamente, caracteriza a emoção em termos de cinco componentes: (1) expressão, (2) tendência de ação, (3) reação corporal, (4) sentimento e (5) avaliação. Esta abordagem de múltiplos componentes provou ser útil não só para conceituar (Sander, Grandjean, & Scherer, 2005), mas também para medir (Mauss & Robinson, 2009) emoções. (COPPIN; SANDER, 2021, p.6)

Então, partindo dessa definição ou da sua composição, percebemos o quanto é difícil capturar toda a riqueza do fenômeno emocional. É como um espectro de cores para as quais temos uma sensibilidade mas que continuam existindo elementos [cores] que não enxergamos a olho nu. Conforme vamos acrescentando mais componentes às definições das emoções é como se pudéssemos ver outras cores. Entretanto, ainda que não sejamos capazes de enxergar cientificamente, as cores estão lá. Não vemos os raios ultravioleta, mas sentimos os seus efeitos em nossa saúde. É uma metáfora válida para tratarmos sobre o estudo científico da violência, do assédio e das emoções.

É importante destacar que a forma como temos acesso ao conteúdo sobre como as pessoas se sentem é, principalmente, pelo uso da linguagem. Então as operações semióticas são fundamentais para essa expressão. Entretanto, o que uma pessoa fala sobre o que está sentindo não é a emoção, é uma das suas respostas emocionais. É a sua experiência subjetiva com a emoção e não o fenômeno como um todo.

Apesar disso, sabe-se que as emoções participam do sistema motivacional, que se entrelaça aos significados e aos elementos semióticos que orientam os nossos processos decisórios (BRANCO, 2016, 2021), o que é extremamente relevante para a nossa argumentação nesse trabalho. Não devemos, portanto, reduzir as emoções às suas respostas, pois os seus efeitos vão muito além delas.

 

O processo decisório humano, princípios da ação humana e a opção pelo emprego da violência e do assédio

Aprofundando a nossa análise sob o ponto de vista socioemocional e do processo decisório humano, existe um ponto de encontro entre os princípios da equifinalidade, da multifinalidade e das emoções. Essa reflexão nos ajudará a compreender a complexidade e a diversidade das decisões tomadas pelos indivíduos.

Como anteriormente introduzido, no contexto da equifinalidade, reconhecemos que existem diferentes caminhos que podem levar a um mesmo resultado. Isso significa que, diante de um problema ou dilema, as pessoas têm a liberdade de escolher entre diversas opções e estratégias para alcançar seus objetivos. Entretanto, mesmo que diferentes indivíduos escolham caminhos distintos, eles podem chegar a resultados semelhantes. Apesar disso, é importante ressaltar que a equifinalidade não implica que qualquer caminho ou estratégia seja aceitável ou ético. Cada pessoa deve levar em consideração os princípios morais e éticos na tomada de suas decisões.

Por outro lado, como também anteriormente indicado, a multifinalidade sugere que, a partir de uma mesma condição inicial, diferentes resultados finais podem ser alcançados. Isso significa que, mesmo quando duas pessoas enfrentam a mesma situação e têm acesso às mesmas informações ou até experimentem emoções semelhantes, suas decisões podem levar a desfechos diversos. Isso ocorre devido às diferenças individuais, experiências passadas, valores, motivações e influências contextuais que cada pessoa traz para o processo decisório. Assim, duas pessoas podem tomar decisões distintas, mesmo partindo de uma mesma situação, e isso pode levar a resultados finais diferentes.

Nesse contexto, os princípios da equifinalidade e da multifinalidade nos indicam que existem diversas opções e estratégias disponíveis. Alguns buscarão soluções pacíficas e respeitosas para lidar com conflitos e tomar decisões, outros tomarão os atalhos proporcionados pela violência e pelo assédio, que se torna funcional na medida em que se garante uma assimetria severa entre os envolvidos. Mas por que existem essas diferenças? Há algum elemento central nesse processo que nos auxiliasse a enfrentar as expressões violentas?

Uma alternativa de resposta a essas questões podemos encontrar no papel das emoções ao estarem associadas ao processo decisório no sentido de regularem ações humanas em conjunto com a capacidade de agência e a autonomia de cada pessoa para se autorregular por crenças e valores, que são premissas profundamente entrelaçadas com as nossas emoções (PIRES; BRANCO, 2023a, 2023b) e que consistem nos principais guias das ações humanas.

Entretanto, o desejo de acelerar a obtenção de resultados, abreviar os dissabores da interação humana, a imaturidade emocional para lidar com composição negocial ou mesmo certas condições particulares de saúde mental podem influir na priorização da ação violenta. Sobre isso, o fenômeno da aceleração social contribui sobremaneira para influir no processo decisório conforme explicado por Pires (2023b) como os processos ansiogênicos podem estar correlacionados com a aceleração das decisões no contexto do consumo de conteúdo digital por meio de sistemas cibernéticos.

 

A violência e o assédio no ambiente acadêmico

Considerando que entendemos a violência como formas comportamentais de expressão da imposição assimétrica de vontades e desejos sobre alguém, no contexto de emoções que motivam essas expressões, a violência que ocorre no ambiente acadêmico é uma questão igualmente complexa que envolve diversos aspectos, como o narcisismo, a competição, o egoísmo intelectual e as relações de poder.

Nesse contexto, uma abordagem sistêmica e integral, dentro da ótica que apresentamos, é necessária para compreender a violência de forma mais aprofundada. Isso envolve considerar as interações que ocorrem no ambiente acadêmico e, principalmente, as emoções subjacentes aos trabalhos que se são realizados nesse contexto e às necessidades das pessoas que nele transitam.

A violência no ambiente acadêmico também está relacionada às práticas sociais e às crenças e aos valores organizacionais que as orientam. Portanto, cada estabelecimento de ensino deve construir estratégias para levantar, acompanhar e promover práticas coletivas alinhadas aos valores a serem desenvolvidos para enfrentar a violência. Além disso, é fundamental promover sugestões culturais e interações que estimulem comportamentos pró-sociais.

É, também, importante destacar que a violência nem sempre é explícita e muitos agentes violentos sabem se manter em uma área ambígua que dificulta a caracterização dos seus abusos. A manipulação, por exemplo, é uma delas, a utilização de alunos como mera mão de obra para atingir certos objetivos pessoais são alguns exemplos de como comportamentos abusivos podem ser mascarados pelas próprias atividades acadêmicas. Nesse sentido, a existência de um código de conduta, de crenças e valores sociais pode auxiliar na orientação dos processos decisórios individuais.

A esse respeito, Pires (2022) explica que existem pessoas especialmente aptas para conduzir esses perversos processos de manipulação e que são conhecidas como psicopatas funcionais. Tais indivíduos possuem características similares às do Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS), desenvolvendo aptidões para atuar em organizações que priorizam o individualismo e a ganância. Mostram-se capazes para adotar comportamentos antiéticos, violentos e abusivos. Entretanto, são eficientes para transparecerem até mesmo como profissionais corajosos, assertivos, capazes e realizadores em meio aos seus desmandos, confusões e manipulações.

Sob o ponto de vista psicológico, uma grande parte dos indicadores relacionados à psicopatia funcional parecem estar associados a alterações na função reguladora que as emoções exercem sobre o processo decisório humano. A psicopatia funcional representa, portanto, um desafio para os gestores organizacionais e para as equipes das seções de recursos humanos, pois essas pessoas desenvolvem estratégias nas quais é possível confundir: (1) falta de empatia com coragem; (2) egoísmo com zelo; e (3) manipulação com liderança. Então, esses perversos indivíduos estão ao nosso redor e as estratégias socioemocionais para o enfrentamento à violência e aos abusos por eles promovidos parecem não ser eficazes.

Para além da atuação dos psicopatas funcionais, qualquer pessoa, no ambiente acadêmico, está sujeita à competição, ao narcisismo, à ambição e ao egoísmo intelectual, o que também pode contribuir para a manifestação da violência (ROUMBANIS, 2019). Esses são cenários e emoções que estão na raiz do estabelecimento de relações de poder assimétricas que passam a desempenhar um papel importante nesse contexto. Para enfrentar a violência no ambiente acadêmico, é importante promover uma cultura que valorize a cooperação, o respeito mútuo e o diálogo construtivo, sob um olhar socioemocional. Isso envolve a criação de espaços seguros de expressão (BARBANTI, 2022), a promoção de práticas educacionais que incentivem a empatia e o cuidado com o outro, além do estabelecimento de relações de poder mais equitativas, no contexto do desenvolvimento socioemocional.

 

Considerações finais

Defendemos a necessidade de uma abordagem mais abrangente sobre a violência, que questione as definições tradicionais e nas quais se enfatize a importância dos princípios da equifinalidade e multifinalidade na compreensão da complexidade do comportamento humano. Com o propósito de destacar a multiplicidade de modelos explicativos da violência e a importância de uma reflexão profunda para o desenvolvimento de abordagens eficazes de enfrentamento à violência e aos preconceitos, a proposta de estudar a violência e o assédio sob o ponto de vista do processo decisório humano surge como uma alternativa promissora.

Nesse contexto, as decisões humanas desempenham um papel central na expressão da violência, sendo influenciadas por emoções relacionadas à assimetria, ao desrespeito e à falta de preocupação com os danos causados.

Como reguladores autônomos desses processos estão a liberdade e a responsabilidade, na qualidade de valores interdependentes e proporcionais. Quanto maior a liberdade, maior deve ser a responsabilidade na regulação do processo decisório. A responsabilidade aumenta quando as pessoas são incentivadas a refletir sobre suas decisões e a maneira como expressam seus desejos.

Uma estratégia eficaz para intervir na violência e no assédio, consiste em promover a alteração dos elementos que levam a decisões violentas. Isso implica em enfatizar a responsabilidade das pessoas pelas decisões que tomam e pelas formas de expressão que escolhem para comunicar seus desejos, intenções e emoções.

Explicamos que a violência no ambiente acadêmico é um fenômeno complexo que envolve aspectos como o narcisismo; a ambição; a competição; o egoísmo intelectual; e as relações de poder assimétricas. Para enfrentar esse problema, é necessário adotar uma abordagem sistêmica, considerar as emoções e os valores envolvidos e promover práticas coletivas pró-sociais que valorizem a cooperação e o respeito mútuo.

Além disso, é necessário tornar os ambientes seguros para expressão, atender às necessidades básicas das pessoas e garantir seus direitos fundamentais de forma a promover a responsabilidade individual e a modificação de elementos que levam a decisões violentas como estratégias de intervenção.

 

Referencias

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[1] Utilizamos as palavras paciente/agente, mas é necessário esclarecer que as situações de violência nem sempre envolvem a passividade dos participantes. Situações de violência podem ser construídas por todos os que se envolvem na interação, então esse cuidado interpretativo deve ser considerado.

[2] A possibilidade do dano provém da incerteza dos processos de significação, pois cada pessoa experimentará, subjetivamente, a violência de uma forma. Algumas pessoas nem chegam a perceber a situação de abuso até que outra a alerte. Um exemplo são as justificativas judiciais de negação de danos morais por “dissabores da vida cotidiana”. Nem todo dissabor pode ser considerado gerador de dano, ainda que implique em conflito.

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