Esse artigo foi especialmente escrito para registrar e detalhar os elementos teóricos a serem apresentados na palestra sobre a utilização de técnicas e métodos psicológicos para a análise do comportamento no contexto penitenciário e da segurança pública a ser realizada no I Encontro de Ciência Aplicada em Inteligência Penitenciária, realizado em 25 e 26 de julho de 2023.
Introdução
Neste artigo temos o objetivo principal de realizar uma reflexão sobre as possibilidades e limitações do estado da arte da ciência comportamental que vem sendo utilizada para a construção de métodos expeditos de análise do comportamento, aplicada à elaboração de produtos de inteligência e de segurança pública.
Para atingirmos esse objetivo, sob a ênfase dos aportes científicos da Psicologia, faremos uma apresentação sobre: (1) o estado da arte dos métodos de pesquisa psicológica e algumas de suas limitações; (2) as influências emocionais na produção científica orientada à análise do comportamento para inteligência e segurança pública nos últimos 20 anos; (3) as influências do mercado de produtos orientados à análise do comportamento; e (4) as possibilidades de elaboração de produtos de inteligência seguros, com base no conhecimento e métodos psicológicos atualmente disponíveis.
Nesse contexto, a busca por uma compreensão mais profunda do comportamento humano tem se mostrado essencial não apenas para o avanço da ciência, mas também para o desenvolvimento de áreas cruciais, como a inteligência penitenciária e a segurança pública. Entretanto, é imperativo refletir sobre os modelos científicos e seus resultados, uma vez que métodos atuais podem não ser suficientes para lidar com a ampla complexidade desses contextos e do comportamento humano que aí se observa.
Na inteligência penitenciária, por exemplo, a compreensão das dinâmicas comportamentais dos detentos; de sua insuperável lealdade às facções; e do comportamento conscientemente dissimulativo são elementos-chave para o gerenciamento do sistema prisional e para a construção de produtos de inteligência cada vez mais específicos e úteis para o enfrentamento de severas ameaças nos campo penal e penitenciário.
Além disso, a análise do comportamento e os aportes da Psicologia podem seguir contribuindo para uma abordagem científica e mais aprofundada para a identificação de potenciais ameaças; para a prevenção de conflitos; para a construção de políticas penitenciárias sólidas e integradas; e para e promoção da tão desejada reabilitação dos apenados.
Por sua vez, na segurança pública, a compreensão do comportamento humano pode contribuir significativamente para a prevenção de crimes e a elaboração de estratégias eficazes de policiamento. Ao analisar os padrões de comportamento não verbal em situações de risco. É possível antecipar potenciais confrontos e adotar medidas preventivas que reduzam a violência e protejam a integridade dos cidadãos e dos agentes de segurança.
Contudo, é igualmente importante destacar que a aplicação da ciência na inteligência penitenciária e na segurança pública requer uma abordagem cuidadosa e ética. A competitividade na obtenção de resultados científicos pode levar ao uso indevido de métodos invasivos; à aceleração do emprego de estratégias pseudocientíficas ou à violação dos direitos dos envolvidos. Nesse sentido, é fundamental criticar o que vem sendo utilizado e desenvolver novos métodos e instrumentos que, além de embasados cientificamente, respeitem os princípios éticos e garantam o devido cuidado com as pessoas envolvidas.
Assim, é urgente o desenvolvimento de uma ciência aplicada mais integrada, que considere a complexidade e as especificidades do comportamento humano, nos contextos penitenciários e da segurança pública. A colaboração entre diferentes áreas do conhecimento, como a Psicologia, a Sociologia e a Criminologia, pode proporcionar avanços significativos no entendimento dessas dinâmicas e, por consequência, contribuir para a construção de sociedades mais seguras e justas.
A violência no contexto dos trabalhos de inteligência penitenciária e na segurança pública.
Algumas idiossincrasias permeiam os trabalhos de inteligência penitenciária e policial. Uma delas é que um dos centros de interesse é o enfrentamento à violência organizada, voluntária, consciente e lucrativa.
Nesse contexto, as técnicas científicas devem se orientar à análise dos aos processos decisórios e dos elementos comportamentais que possam nos ajudar, em termos de fontes humanas, a avaliarmos as estratégias de persuasão, de credibilidade e também como as emoções, dos criminosos e dos servidores policiais, podem influenciar nesse processo.
Para tanto, propomos uma definição operacional de violência que nos ajuda a selecionar alguns aspectos-chave para o trabalho científico de análise de credibilidade. Então, sob esse ponto de vista e sinteticamente, podemos definir a violência:
Como as formas comportamentais de expressão que pessoas, grupos ou sistemas cibernéticos digitais utilizam na tentativa de impor, assimetricamente, as suas decisões sobre outros, à revelia das convenções sociais, da legislação ou de valores universais, podendo causar algum tipo de dano individual ou coletivo. (PIRES, 2023a, p. 8031)
Essa visão, aparentemente mais simples e superficial, nos apresenta a vantagem de mergulharmos em um dos elementos comuns da violência, que são as decisões humanas ou dos sistemas cibernéticos digitais como representantes dos humanos, o que veremos cada vez mais presente no crime organizado.
Essa abordagem nos oferece uma alternativa provisória, mas promissora, para responder à pergunta sobre a existência de uma causa geral para a violência – a decisão humana em expressar as suas vontades de forma assimétrica, desrespeitosa a convenções coletivas e despreocupada com os seus efeitos e com danos que possa causar.
Mantendo esse enquadramento teórico em mente, há que se refletir sobre a violência como a expressão da decisão humana, não apenas sob o ponto de vista cognitivo, do processamento da informação ou da avaliação de custos e benefícios. É importante trazer ao primeiro plano o papel de certas emoções que estão na raiz dos três principais elementos da expressão da violência: (1) a assimetria entre os envolvidos; (2) o desrespeito às convenções formais, informais ou a valores universais; e (3) a despreocupação com produção de algum dano. Portanto, o estudo das emoções é bastante profícuo em termos científicos para a elaboração de metodologias que possam ser utilizadas pelos sistemas de inteligência.
A necessidade de uma abordagem sistêmica e integral para a compreensão da violência no comportamento humano
Para uma compreensão mais aprofundada do fenômeno complexo da violência, é importante adotarmos uma abordagem sistêmica e integral do tema, evitando a mera fragmentação, por meio de fatores ou características, para a compreensão dos fenômenos biopsicológicos (VALSINER, 2021) subjacentes. Também é relevante contextualizarmos a interação violenta na sociocultura, em seus antecedentes, processos e não somente nos seus resultados. Nessa direção, enfatizamos a relevância dos processos de construção de significados e o seu profundo entrelaçamento com as emoções humanas, em um contexto semiótico e social, que resulta em reflexos tanto para o indivíduo quanto para o coletivo. Essa construção está na raiz dos conflitos e dos desejos que antecedem as manifestações violentas.
Outro esforço teórico que deve ser realizado é no sentido de conceber o desenvolvimento humano no contexto de um ecossistema cultural (XU, WU, LI, 2021) e da atuação conjunta e contínua da canalização cultural, da intencionalidade e da agência (capacidade de autogoverno) da pessoa na construção de sua subjetividade e na orientação da sua ação no mundo (PIRES; BRANCO, 2012, 2023a).
Essa perspectiva nos permite uma visão mais abrangente, intra e transpsicológica sobre como a cultura coletiva pode canalizar os processos de internalização de símbolos significativos (GILLESPIE, 2021), em cenários caracterizados por múltiplas possibilidades e perspectivas, incluindo as soluções violentas. Deve-se enfatizar a sociogênese, valorizando a participação ativa e construtiva dos sujeitos em interação e, assim, estabeleceremos um enquadramento para refletirmos sobre como as práticas educacionais e a dinâmica dos posicionamentos dos atores podem vir a promover ou dificultar o desenvolvimento da agência e demais capacidades psicológicas dos envolvidos, ampliando as possibilidades de prover inteligibilidade para a compreensão da violência sob os pontos de vista social, individual, cultural e biológico, articuladamente.
Nesse sentido, uma abordagem integral não é aquela que nega a fragmentação da produção do conhecimento, o que é uma consequência dos métodos que utilizamos para conhecer e inerente ao pensamento categorial que sempre será fragmentado. Abordar de forma integral significa articular esses diversos conhecimentos, sem desprezá-los, dentro de uma avaliação sobre quais das abordagens podem mais contribuir para o enfrentamento à violência em determinado contexto específico.
Então, cada situação recomendará uma composição entre diversas abordagens, o quem nesse trabalho, denominamos de enfrentamento integral e sistêmico. Tomando isso em conta, três aspectos relacionados à violência ganham importância: (1) a efetiva análise das práticas realizadas em determinado ambiente para a compreensão das crenças, valores e emoções que as orientam; (2) a introdução de novos elementos que promovam a alterações favoráveis aos trabalhos de inteligência; (3) a promoção de sugestões culturais, práticas coletivas e de interação entre os sujeitos que eliciem emoções desejadas (PIRES; BRANCO, 2023a, 2023b). Dessa forma, poderemos influir no contexto de organizações criminosas, promovendo a evidenciação de suas atividades.
No entanto, não é nessa direção que o conhecimento científico vem sendo produzido. Vejamos algumas questões sobre esse tema.
Reflexões sobre a produção do conhecimento no campo acadêmico e seus possíveis reflexos nos produtos dele decorrentes
É muito importante entender que o cientista é uma pessoa, um ser humano como qualquer outro, com desejos, aspirações e ambições. Por mais óbvia que possa parecer essa observação, ela passa despercebida para a maioria. Assim como ocorre com os atletas, com os professores, com profissionais de saúde e outras profissões, as pessoas, não raras vezes, pensam nesses profissionais de forma romântica, como se apenas estivessem interessadas no avanço da civilização e da espécie humana.
Por mais meritórias que sejam determinadas profissões, seus integrantes estão sujeitos à ambição, à ganância etc. No caso da ciência, ainda existe certa dose de narcisismo, principalmente se as pesquisas realizadas por determinada pessoa lhe coloca em um lugar de destaque. Não somente estudos recentes tratam desse tema (e.g. DREYER et al., 2017; JANKE; DAUMILLER; RUDERT, 2019; LEMAITRE, 2017), mas a própria prática acadêmica pessoal serve como elemento empírico de convicção sobre uma prevalência narcisista no meio acadêmico.
Sob certo ponto de vista, é natural esperar esse resultado, já que pessoas muito inteligentes buscam valorizar os seus achados. Então, muito do conhecimento científico hoje produzido está envolto em meio a esse narcisismo. Outra consequência desse fenômeno, é que, depois de passar décadas estudando algum assunto, o pesquisador, de forma geral, evitará reconhecer erros cometidos, defendendo os seus pontos de vista mesmo diante de novas evidências.
Por outro lado, algumas pessoas utilizarão a sua inteligência e os seus talentos para questionar a reputação e o trabalho científico de outros pesquisadores concorrentes, perseguindo os benefícios de ter descoberto novos métodos ou trabalhando na elaboração de produtos a serem usados no campo operacional.
Um dos aspectos, não explícitos, mais interessantes na produção científica é a questão da concorrência. Alguns estudos vêm tratando do assunto (e.g. WAAIJER et al., 2019; RUFFINI, 2020) Ela existe entre pessoas, entre instituições e entre grupos de pesquisa. Está intimamente relacionada ao narcisismo. Não é o caso geral na pesquisa brasileira, pois, com raras e honrosas exceções, nenhum cientista ficará rico com o resultado de suas pesquisas.
Entretanto, existem contextos internacionais nos quais alguém pode enriquecer com as bolsas, prêmios, venda de livros e de métodos. Então, essa concorrência pode levar a comportamentos eticamente questionáveis, mas disfarçados, como questionamentos aos métodos, aos resultados e às pesquisas realizadas por outro pesquisador. Entretanto, o objetivo encoberto é desqualificar o conhecimento que foi produzido pelo concorrente. Não vou me estender nesse tópico, pois tudo me parece óbvio, já que esses comportamentos já foram estudados nas atividades comerciais. Nesse sentido, a ciência de alta performance não é muito diferente do comércio.
O conhecimento operacional disponível para análise do comportamento é confiável?
É necessário desenvolver um senso crítico sobre o que se encontra no mercado de produtos e de cursos que serão oferecidos por pessoas não qualificadas e literatura sobre linguagem corporal que nada mais é do que paráfrases de livros anteriormente publicados. Além disso, é necessário pontuar que, no campo persuasivo, há um risco muito grande do desenvolvimento da utilização de estratégias pseudocientíficas para gerar autoridade em relação aos produtos criados.
Recentemente, veio a público o relatório de um estudo realizado por cinco dezenas de autores, sobre a questão da confiabilidade dos livros e treinamentos oferecidos. Eles chegam à seguinte conclusão:
Infelizmente, conceitos dúbios sobre comunicação não-verbal são amplamente divulgados, principalmente na Internet e em livros voltados para o público em geral, assim como em seminários e conferências (coisas do tipo: “a linguagem corporal nunca mente”). O uso de tais conceitos pode ter consequências negativas e talvez até desastrosas (Denault, 2015; Kozinski, 2015; Lilienfeld & Landfield, 2008). Por exemplo, profissionais de segurança e justiça que não estão familiarizados com o processo de “revisão por pares” podem ser induzidos a acreditar que esses conceitos duvidosos são científicos e lhes conferem uma autoridade totalmente injustificada (Jupe & Denault, 2018). Como demonstraremos, a confiança em tais conceitos é fundamentalmente equivocada, pois as decisões dos profissionais de segurança e justiça podem ser distorcidas e prejudicar a vida ou a liberdade dos indivíduos. (Denault et al., 2020, p.2) [grifos nossos]
Quais são os motivos pelos quais as pessoas consomem pseudociência? Quais são os riscos da pseudociência? Os autores levantam alguns desses motivos:
As razões para crenças irracionais têm sido objeto de extensa literatura científica. As habilidades de pensamento crítico das pessoas, ideologias políticas e religiosas, bem como habilidades cognitivas e conhecimento científico são algumas dessas razões (Bensley & Lilienfeld, 2017; Bensley, Lilienfeld, & Powell, 2014; Boudry, Blancke, & Pigliucci, 2015; Bronstein , Pennycook, Bear, Rand, & Cannon, 2018; Gauchat, 2012; Majima, 2015; Nisbet, Cooper e Garrett, 2015; Pennycook, Cheyne, Barr, Koehler, & Fugelsang, 2015; Pennycook & Rand, 2018; Shen & Gromet, 2015). Mas por que algumas organizações nas áreas de segurança e justiça recorrem à pseudociência e às técnicas pseudocientíficas? Para uma comunidade científica internacional que publicou milhares de artigos revisados sobre comunicação não verbal, pode parecer surpreendente que essas organizações adotem programas, métodos e abordagens que, à primeira vista, parecem científicos, mas, na realidade, não são. Oferecemos cinco hipóteses sobre por que algumas organizações recorrem à pseudociência.
Então, eles apresentam cinco razões, que vamos sintetizar na lista a seguir:
- As organizações têm problemas reais para resolver. Então se aparece alguém alegando ter desenvolvido um método que resolve o problema, a tentação de testar tal abordagem é bem grande;
- Nem todos os decisores possuem habilidades para discernir o que realmente é conhecimento científico;
- Muitos decisores ignoram a importância da ciência;
- Os riscos da pseudociência são subestimados pelas organizações que a adotam;
- A irresponsabilidade dos próprios pesquisadores. Sobre isso argumentam (Denault et al., 2020, p.8):
Finalmente, quando as organizações nas áreas de segurança e justiça têm expectativas irreais decorrentes de séries de televisão e outros meios de comunicação populares, e se voltam para a pseudociência, parte da responsabilidade recai sobre a comunidade científica internacional (COLWELL, MILLER, MILLER, & LYONS, 2006; DENAULT & JUPE, 2017). De fato, “o processo científico não para quando os resultados são publicados em um periódico revisado por pares. Uma comunicação mais ampla também está envolvida, e isso inclui garantir não apenas que as informações (incluindo incertezas) sejam compreendidas, mas também que informações erradas e erros sejam corrigidos quando necessário” (Williamson, 2016, p. 171).
Sobre os riscos da pseudociência, há o alerta de que as séries televisivas são excelentes para entretenimento, não se prestando a material didático para a aprendizagem da análise do comportamento. Influenciadores digitais que fazem análise de comportamentos de artistas, políticos e atletas, principalmente se não possuem qualquer formação científica, também são formas de entretenimento e apenas isso.
As supostas análises realizadas nesses contextos, não raras vezes, expõem as pessoas ao ridículo, levantam hipóteses sobre suas emoções e outros comportamentos privados. Normalmente essa exposição do sujeito é feita por pessoas sem qualquer preparo científico real.
Uma pessoa ética e cientificamente capaz não realiza análises públicas. O Código de Ética da Psicologia, por exemplo, proíbe que um psicólogo participe de análises de comportamento de pessoas específicas nos meios de comunicação. Além disso, existem os mitos, um dos maiores riscos da pseudociência, que surgem a partir de trabalhos científicos, cujos comentários detalhados fogem ao escopo desse trabalho. Vejamos a seguir, elementos que nos ajudarão a entender a complexidade da análise comportamental aplicada à elaboração de produtos de inteligência.
Os riscos de pseudociência nos serviços de inteligência e na segurança pública
Recentemente, uma quantidade maior de acadêmicos vêm fazendo alertas sobre os riscos da pseudociência na interpretação do comportamento não verbal no contexto da justiça e da segurança pública.
Como anteriormente mencionado, Denault et al. (2020) se reuniram para realizar um levantamento sobre esses riscos da pseudociência e redigiram um relatório no qual incluíram uma interessante avaliação sobre programas, métodos e abordagens que não refletem o estado da ciência.
No mencionado artigo, eles examinaram:
(1) os conceitos de comunicação não verbal veiculados por esses programas, métodos e abordagens, mas também;
(2) as consequências de seu uso (por exemplo, na vida ou na liberdade dos indivíduos).
Para atingir esses objetivos, eles fizeram uma revisão da pesquisa científica sobre comunicação não verbal e examiram, em detalhes:
O Programa SPOT – Triagem de Passageiros por Técnicas de Observação;
O método BAI – Entrevista de Análise do Comportamento;
A Sinergologia[1][2], que é uma abordagem.
Eles também elencam cinco hipóteses para explicar por que algumas organizações nas áreas de segurança e justiça estão recorrendo à pseudociência e às técnicas pseudocientíficas. Não faz parte do escopo desse trabalho entrarmos em detalhes sobre esses tópicos, mas recomendar atenção para essas indicações.
Sobre os mesmos temas, a opinião dos autores é a seguinte:
A mentira não pode ser detectada de relance, como muitas vezes se afirma na Internet. A crença de que evitar o olhar permite a detecção de mentiras é um equívoco generalizado (The Global Deception Research Team, 2006). Assim como as expectativas irreais do público em relação à ciência forense (Chin & Workewych, 2016), a comunicação não verbal sofreu com sua popularidade em séries de televisão (por exemplo, Lie to Me) e outras mídias populares (Levine, Serota, & Shulman, 2010; Vrij , Granhag, & Porter, 2010). De fato, estudiosos que têm experiência científica em detecção de mentiras (e verdades) concordam que não existem comportamentos não-verbais presentes em todos os mentirosos e ausentes em todas as pessoas que dizem a verdade. Não existem comportamentos não verbais indicativos do ato de enganar, como o nariz de Pinóquio (DePaulo et al., 2003; Vrij, 2008). Além disso, quando expressões faciais e gestos são documentados como tendo uma ligação com a mentira, essa ligação é tipicamente fraca (DePaulo et al., 2003; Vrij et al., 2017) e muitas vezes mediada por variáveis situacionais (Sporer & Schwandt, 2006, 2007). Em outras palavras, embora não seja uma bala de prata, a análise dos comportamentos não verbais de um indivíduo pode ser baseada no conhecimento publicado em revistas científicas revisadas por pares. De fato, pesquisas conduzidas pela comunidade internacional de acadêmicos com experiência científica em comunicação não verbal podem informar a compreensão de uma ampla gama de comportamentos humanos (Burgoon et al., 2010; Knapp et al., 2014; Moore et al., 2014; Patterson, 2011). (Denault et al., 2020, p.1)
Nos últimos anos, houve um grande interesse das forças de segurança pela possibilidade de automação do reconhecimento de emoções, já que uma das respostas emocionais é a tendência de ação. Uma emoção motiva para fazer ou deixar de fazer algo. Para algumas pessoas, isso significa que, ao identificar uma emoção, seria possível conseguir alguma previsibilidade do comportamento. Para forças de segurança essa seria a entrada teórica para a prevenção aos delitos – o pré-crime.
Nesse contexto, algumas teorias são mais fáceis de automatizar do que outras. O que nos leva a uma questão que nos serve de exemplo. É possível a automação do reconhecimento de emoções?
Provavelmente uma teoria integrativa sobre emoções será bastante complexa e mais difícil de ser automatizada, considerados os avanços tecnológicos atuais. Nesse contexto, as Teorias de Emoções Básicas e as Teorias Dimensionais são as mais fáceis de serem automatizadas e podem ser usadas em protótipos ou modelos teóricos.
Entretanto, o cientista de dados, engenheiro de computação e outros profissionais que tenham interesse nesse assunto têm que estar cientes de que, ao apropriar-se dessas teorias, está automatizando as respostas emocionais a elas associadas como anteriormente explicado. Reconhecendo essas limitações e divulgando o que os sistemas iniciais realmente são capazes de realizar, imagino que a pesquisa possa avançar a passos largos.
O grande problema é, que um elemento relacionado aos nossos dois tópicos anteriores, o narcisismo e a concorrência, induzem os cientistas a participarem em um processo persuasivo sobre os produtos por eles desenvolvidos.
Entretanto, reconhecer que o conhecimento é acumulativo, provisório e fragmentado, é fundamental para o avanço da ciência. Então, esse desejo de prever o comportamento, apresentado por determinadas organizações (governos, redes sociais etc) pode estar na raiz da reação tão desproporcional que se observa em relação às Teorias de Emoções Básicas e Dimensionais. É uma hipótese que eu sempre mantenho em mente ao testemunhar esses embates que, não raras vezes, vão bem além do questionamento acadêmico.
Então, é realmente necessário reconhecer que a mera automação de teorias de emoções básicas e de um suposto sistema de reconhecimento de emoções possa representar uma ameaça aos direitos fundamentais, seja em relação à privacidade a que todos temos direito, seja no tocante a possíveis tentativas de manipulação do comportamento a partir de sua previsibilidade por meio do reconhecimento das emoções.
As críticas ferrenhas que vemos podem ter essa origem. No que diz respeito aos cientistas bem intencionados, a sua preocupação com as possíveis violações dos direitos humanos pode ser a razão.
No caso dos nem tão ingênuos assim, a sua oculta vontade de ocupar o espaço dos que saíram na frente pode estar na base dos questionamentos. Sobre isso, veja um artigo que procura explicar o comportamento antiético. O comportamento manipulativo também se manifesta na ciência. A esse respeito, Pires (2022) explica que existem pessoas especialmente aptas para conduzir esses perversos processos de manipulação e que são conhecidas como psicopatas funcionais. Tais indivíduos possuem características similares às do Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS), desenvolvendo aptidões para atuar em organizações que priorizam o individualismo e a ganância. Mostram-se capazes para adotar comportamentos antiéticos, violentos e abusivos. Entretanto, são eficientes para transparecerem até mesmo como profissionais corajosos, assertivos, capazes e realizadores em meio aos seus desmandos, confusões e manipulações.
Sob o ponto de vista psicológico, uma grande parte dos indicadores relacionados à psicopatia funcional parecem estar associados a alterações na função reguladora que as emoções exercem sobre o processo decisório humano. A psicopatia funcional representa, portanto, um desafio para os analistas de inteligência e os gestores de políticas, pois essas pessoas desenvolvem estratégias nas quais é possível confundir: (1) falta de empatia com coragem; (2) egoísmo com zelo; e (3) manipulação com liderança. Então, esses perversos indivíduos estão ao nosso redor e dificultam o trabalho sobremaneira.
Podemos concluir que a ciência sempre pode ser utilizada como um argumento de autoridade bastante eficiente e nem sempre será fácil distinguir o que é pseudociência. Entretanto, qual seria um caminho mais seguro para ser seguido pelas organizações e governos? É o que iniciaremos a debater a partir de alguns princípios do comportamento hunamo.
A equifinalidade e a multifinalidade no comportamento humano
A autonomia dos seres humanos, e a forma como nos orientamos por uma composição de critérios cognitivos e emoções para tomar as nossas decisões, estabelece um curioso e complexo sistema de interações intra e transpsicológicas que, se compreendido, pode ajudar em muito ao enfrentamento da violência.
Para isso, alguns princípios provenientes das teorias de sistemas podem nos auxiliar. É o caso da equifinalidade e da multifinalidade. A partir da Teoria Geral dos Sistemas Abertos, Amaral (2016) nos explica que, segundo o princípio da equifinalidade, aplicado ao comportamento humano, o fenômeno observado, apesar de ter aparência semelhante, pode ter processos, antecedentes e causas distintas. O que observamos se mostra, então, como parecido nos seus estados finais ou resultados, mas distinto em suas causas e nos caminhos para chegar à sua aparência perceptível. Por outro lado, o princípio da multifinalidade nos informa que fenômenos cuja causa, antecedentes e processos sejam muito semelhantes, podem se apresentar de forma distinta em seus estados finais ou resultados.
Por exemplo, o comportamento dentro das prisões é influenciado por normas e dinâmicas específicas de cada grupo de detentos. Dessa forma, a partir de uma mesma situação, diferentes indivíduos podem reagir de maneiras distintas, chegando a resultados variados.
Da mesma forma, no contexto da segurança pública, a diversidade de comportamentos apresentada pelos cidadãos é um reflexo da equifinalidade e multifinalidade. Cada indivíduo possui uma história de vida única, moldada por experiências pessoais e sociais, o que pode levar a diferentes comportamentos em uma mesma situação. A análise comportamental deve, portanto, ser sensível à individualidade de cada pessoa, considerando suas motivações, crenças e contextos específicos.
A conjunção desses dois princípios e a sua aplicação ao comportamento humano nos mostra o quão complexa pode ser a compreensão das decisões humanas e do seu comportamento expressivo. Essa complexidade em relação ao tema faz com que haja uma multiplicação de modelos explicativos variados e que nem sempre possuem a confiabilidade suficiente para ser utilizado como preditor comportamental, por exemplo.
No entanto, o que esses princípios nos indicam é que a incerteza é um desafio a ser enfrentado na elaboração de produtos de inteligência baseados em análise comportamental, uma vez que a previsão de resultados precisos é extremamente complexa. Comportamentos humanos são influenciados por uma infinidade de variáveis, muitas delas imprevisíveis, o que torna difícil garantir resultados padronizados. Além disso, as mudanças constantes na sociedade e nos ambientes em que as pessoas interagem requerem uma abordagem dinâmica e atualizada, capaz de se adaptar às novas realidades.
No entanto, o que esses princípios nos ajudam a fazer é procurar um ponto de encontro das trajetórias em que tanto as condições iniciais, quanto os possíveis resultados passam pelo mesmo caminho. Diante dessas complexidades, é essencial que um contínuo investimento em pesquisa e desenvolvimento seja realizado, a fim de aprimorar os métodos e instrumentos utilizados na análise comportamental, tornando-os mais confiáveis e sensíveis às nuances do comportamento humano. Seria possível encontrar tal instância? Qual seria um dos elementos comportamentais fundamentais para alavancar a qualidade dos produtos de inteligência penitenciária e da segurança pública? É o que veremos, após tratarmos sobre como o conhecimento científico vem sendo construído, nesse campo do conhecimento, ao longo das últimas décadas.
O que são emoções?
Antes de apresentarmos reflexões sobre os métodos e técnicas comportamentais utilizados para a análise do comportamento na elaboração de produtos de inteligência, é necessários nos aprofundarmos em um dos assuntos subjacentes à necessidade de informação por meio de fontes humanas: as emoções.
Uma diversidade de técnicas, métodos e teorias são baseadas em conhecimento científico produzido a partir do que conhece sobre o papel que as emoções desempenham no processo decisório, nas motivações para o comportamento expressivo e na dissimulação. É, portanto, papel de justiça afirmar que tratar sobre as emoções e o seu papel preditor no comportamento é um tema bastante polêmico e extremamente complexo. Quanto mais complexo é um fenômeno, mais difícil é defini-lo pelo simples fato de que nossa linguagem é categorial e o melhor que podemos fazer é expressarmos os componentes em partes e por meio das relações sintáticas entre as palavras, descrever as relações que desejamos destacar.
Essa é uma das dificuldades em definir qualquer coisa. Como, por vezes, não há como mencionar todas as suas partes, até porque algumas são inacessíveis aos métodos científicos atuais, nossas aproximações acabam incompletas. As discordâncias epistemológicas costumam ter essa origem quando analisamos definições. No caso das emoções não ocorre de forma diferente.
Orientados por essas premissas, vejamos a seguinte definição de emoção como apresentam a seguinte proposta para definir emoções:
Uma definição consensual que emerge de uma análise da literatura é a seguinte: uma emoção é um ‘processo rápido, de duas etapas, focado no evento, que consiste em (1) mecanismos de eliciação de emoções baseados em relevância que (2) moldam uma multiplicidade de respostas emocionais (ou seja, tendência à ação, reação automática, expressão e sentimento)’. (COPPIN; SANDER, 2021, p.8)
Eles são da opinião que uma boa forma de compreender esse complexo fenômeno é encara-lo como multicomponente, que envolve diversos processos e funções biopsicológicas como a memória, a percepção, a cognição, o uso da linguagem etc. Assim argumentam:
As três principais [famílias de] teorias sobre emoções – emoções básicas, dimensional e avaliação – todas descrevem a emoção como um fenômeno com múltiplos componentes (isso não é uma ideia nova; ver, por exemplo, Irons, 1897). Essa perspectiva, tipicamente, caracteriza a emoção em termos de cinco componentes: (1) expressão, (2) tendência de ação, (3) reação corporal, (4) sentimento e (5) avaliação. Esta abordagem de múltiplos componentes provou ser útil não só para conceituar (Sander, Grandjean, & Scherer, 2005), mas também para medir (Mauss & Robinson, 2009) emoções. (COPPIN; SANDER, 2021, p.6)
Barrett e Westlin (2021) concordam com essa concepção e explicam quais são as principais respostas emocionais:
(1) Expressões faciais e movimentos do corpo. Teorias relacionadas com a Psicologia Evolutiva e Comportamental – Observa-se o comportamento não verbal;
(2) Ativação fisiológica – Teorias relacionadas com a Psicologia Evolutiva e com Neurociências – Medem com algum sensor os parâmetros fisiológicos;
(3) Experiência subjetiva com a emoção [é o que “falamos” sobre a emoção], também conhecida como sentimento. Relacionada às Teorias Cognitivas e Cognitivo-Comportamentais. Também podemos classificar nesse grupo as teorias Dimensionais que são construídas a partir da semiótica e da narrativa das pessoas sobre as emoções.
(4) Tendência de ação – Essa resposta emocional serve mais de motivação para muitos teóricos, pois um dos objetivos principais da automação do reconhecimento é “prever o comportamento” já que há uma tendência de ação associada às emoções.
Então, a partir dessa breve explicação, vemos que as teorias de emoções são, na realidade, teorias de respostas emocionais. Não é possível afirmar que a resposta emocional representa o fenômeno emocional como um todo. Então, por exemplo, ao se reconhecer uma expressão facial, não se está reconhecendo a emoção em si, mas estamos tendo uma pista sobre o fenômeno emocional como um todo. De onde é possível concluir que as expressões faciais não são as emoções supostamente a elas associadas. Entretanto, são pistas para inferências que precisamos fazer sobre o processo decisório no contexto da necessidade de conhecer e das fontes humanas disponíveis, conforme veremos as seguir.
Podemos perceber o quanto é difícil capturar toda a riqueza do fenômeno emocional. É como um espectro de cores para as quais temos uma sensibilidade, mas que continuam existindo elementos [cores] que não enxergamos a olho nu. Conforme vamos acrescentando mais componentes às definições das emoções é como se pudéssemos ver outras cores. Entretanto, ainda que não sejamos capazes de enxergar cientificamente, as cores estão lá. Não vemos os raios ultravioleta, mas sentimos os seus efeitos em nossa saúde. É uma metáfora válida para tratarmos sobre o estudo científico da violência e das emoções.
É importante destacar que a forma como temos acesso ao conteúdo sobre como as pessoas se sentem é, principalmente, pelo uso da linguagem. Então as operações semióticas são fundamentais para essa expressão. Entretanto, o que uma pessoa fala sobre o que está sentindo não é a emoção, é uma das suas respostas emocionais. É a sua experiência subjetiva com a emoção e não o fenômeno como um todo.
Apesar disso, sabe-se que as emoções participam do sistema motivacional, que se entrelaça aos significados e aos elementos semióticos que orientam os nossos processos decisórios (BRANCO, 2016, 2018), o que é extremamente relevante para a nossa argumentação nesse trabalho. Não devemos, portanto, reduzir as emoções às suas respostas, pois os seus efeitos vão muito além delas.
O processo decisório humano, princípios da ação humana e a opção pela dissimulação
Aprofundando a nossa análise sob o ponto de vista do processo decisório humano, existe um ponto de encontro entre os princípios da equifinalidade, da multifinalidade e das emoções. Essa reflexão nos ajudará a compreender a complexidade e a diversidade das decisões tomadas pelos indivíduos.
Como anteriormente introduzido, no contexto da equifinalidade, reconhecemos que existem diferentes caminhos que podem levar a um mesmo resultado. Isso significa que, diante de um problema ou dilema, as pessoas têm a liberdade de escolher entre diversas opções e estratégias para alcançar seus objetivos. Entretanto, mesmo que diferentes indivíduos escolham caminhos distintos, eles podem chegar a resultados semelhantes. Apesar disso, é importante ressaltar que a equifinalidade não implica que qualquer caminho ou estratégia seja aceitável ou ético. Cada pessoa deve levar em consideração os princípios morais e éticos na tomada de suas decisões.
Por outro lado, como também anteriormente indicado, a multifinalidade sugere que, a partir de uma mesma condição inicial, diferentes resultados finais podem ser alcançados. Isso significa que, mesmo quando duas pessoas enfrentam a mesma situação e têm acesso às mesmas informações ou até experimentem emoções semelhantes, suas decisões podem levar a desfechos diversos. Isso ocorre devido às diferenças individuais, experiências passadas, valores, motivações e influências contextuais que cada pessoa traz para o processo decisório. Assim, duas pessoas podem tomar decisões distintas, mesmo partindo de uma mesma situação, e isso pode levar a resultados finais diferentes.
Nesse contexto, os princípios da equifinalidade e da multifinalidade nos indicam que existem diversas opções e estratégias disponíveis. Alguns buscarão soluções pacíficas e respeitosas para lidar com conflitos e tomar decisões, outros tomarão os atalhos proporcionados pela mentira, que se torna funcional na medida em que se garante o aumento da incerteza dos cenários. Mas por que existem essas diferenças? Há algum elemento central nesse processo que nos auxiliasse a aprimorar a precisão das predições comportamentais diante da dissimulação?
Uma alternativa de resposta a essas questões podemos encontrar no papel das emoções ao estarem associadas ao processo decisório no sentido de regularem ações humanas em conjunto com a capacidade de agência e a autonomia de cada pessoa para se autorregular por crenças e valores, que são premissas profundamente entrelaçadas com as nossas emoções (PIRES; BRANCO, 2023a, 2023b) e que consistem nos principais guias das ações humanas.
Entretanto, o desejo de acelerar a obtenção de resultados, abreviar os dissabores da interação humana, a imaturidade emocional para lidar com composição negocial ou mesmo certas condições particulares de saúde mental podem influir na precipitação da ação, o que pode ser utilizado para a obtenção de informações.
Sobre isso, o fenômeno da aceleração social contribui sobremaneira para influir no processo decisório conforme explicado por Pires (2023b) como os processos ansiogênicos podem estar correlacionados com a aceleração das decisões no contexto do consumo de conteúdo digital por meio de sistemas cibernéticos, aspecto igualmente importante para a obtenção de informações.
Existe uma teoria integrativa sobre emoções?
A pergunta que iniciamos esse tópico é: haverá tal teoria no curto ou médio prazos? A resposta parece ser negativa, apesar dos grandes esforços de alguns. O principal problema que nos impede de avançar mais rápido são os aspectos não conscientes das emoções, já que ainda não há metodologia desenvolvida que nos permita acesso a essa importante parte do fenômeno emocional como um todo. Daí, vemos que emoções básicas são polêmicas.
Além disso, existem questões intrínsecas às teorias evolucionistas e às neurociências. Algumas coisas viram moda de tempos em tempos. teorias evolucionistas já fizeram muito sucesso, mas parece que arrefeceram. As neurociências também já estiveram no topo das preferências, mas agora as coisas estão entrando numa normalidade.
Penso que esse tipo de abordagem faz bastante sucesso de vez em quando porque as formulações teóricas fazem sentido para o senso comum. De forma geral, defendem que existe algum processo ancestral ou alguma estrutura orgânica que é responsável por algo que acontece no comportamento.
Então, o senso comum se sente seguro. É como se fosse confortável saber que existe um instinto e a gente não pode correr dele. São explicações lógicas. Entretanto, sem querer generalizar, esses processos ancestrais, inatos, universais ou essas estruturas orgânicas acabam criando a sensação confortável de que alguém não é tão responsável pelo seu comportamento. Afinal, tem aquele processo lá, está relacionado com o Sistema Nervoso Autônomo. Então, que responsabilidade o sujeito tem para se sentir ou se comportar de alguma maneira?
É muito semelhante a ter uma doença que é transmitida por um mosquito. Alguém fica doente, mas foi um mosquito, essa pessoa não podia fazer nada. Então, sob determinado ponto de vista, as explicações biológicas ou baseadas em processos psicológicos muito básicos esvaziam, em certa medida, a agência e a responsabilidade humanas. É por isso que eu gosto de analisar muito bem antes de sair mencionando alguma razão que diminua a nossa humanidade.
Considerações finais
Defendemos a necessidade de uma abordagem mais abrangente sobre a violência, que questione as definições tradicionais e nas quais se enfatize a importância dos princípios da equifinalidade e multifinalidade na compreensão da complexidade do comportamento humano. Com o propósito de destacar a multiplicidade de modelos explicativos da violência e a importância de uma reflexão profunda para o desenvolvimento de abordagens eficazes para o seu enfrentamento, contexto do qual a inteligência penitenciária faz parte.
Nesse sentido, a proposta de estudar a violência sob o ponto de vista do processo decisório humano surge como uma alternativa promissora. As decisões humanas desempenham um papel central na expressão da violência, sendo influenciadas por emoções relacionadas à assimetria, ao desrespeito e à falta de preocupação com os danos causados.
Explicamos que a oferta de produtos e técnicas para análise do comportamento é um fenômeno complexo que envolve aspectos como o narcisismo; a ambição; a competição; o egoísmo intelectual; e as relações de poder assimétricas. Para enfrentar esse problema, é necessário adotar uma abordagem sistêmica, considerar as emoções de todos os envolvidos.
Em suma, reconhecer a influência dos princípios da equifinalidade e multifinalidade na compreensão do comportamento humano é crucial para a construção de produtos de inteligência mais precisos e úteis. A incerteza e a diversidade de comportamentos exigem uma abordagem cuidadosa e flexível, buscando compreender a complexidade inerente à natureza humana e garantir que as estratégias adotadas sejam embasadas em conhecimentos sólidos e atualizados. Somente assim será possível enfrentar os desafios e contribuir para uma sociedade mais segura e justa.
Destacamos as importantes questões levantadas no estudo realizado por Denault e seus colaboradores cuja argumentação transcrevo a seguir:
Embora algumas organizações de segurança e justiça ainda estejam se voltando para a pseudociência, outras já deixaram de lado programas, métodos e abordagens que não refletem o estado da arte no campo científico. Em várias organizações, os pesquisadores já estão trabalhando em estreita colaboração com profissionais de segurança e justiça para implementar práticas baseadas em evidências (por exemplo: Center for Research and Evidence on Security Threats, Reino Unido; High-Value Detainee Interrogation Group, Estados Unidos). Portanto, esperamos que nosso artigo inspire todas as organizações, independentemente da importância que atribuem atualmente à pesquisa científica, a refletir mais sobre os perigos da pseudociência e a importância da ciência nos contextos de segurança e justiça. Além disso, esperamos que encoraje as organizações de segurança e justiça a iniciar ou continuar trabalhando com a comunidade internacional de acadêmicos que possuem experiência científica em comunicação não verbal e detecção de mentiras (e verdades) para desenvolver práticas baseadas em evidências. Também esperamos que os pesquisadores vejam nosso artigo como um convite para aumentar as oportunidades de divulgar seu trabalho científico, promover o método científico e se envolver com profissionais de segurança e justiça para limitar o uso da pseudociência. (Denault et al., 2021, p.8)
Concluímos, portanto , que devemos ter cuidados especiais para identificar os riscos da pseudociência e não trazê-la para a nossa prática profissional.
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[1] A sinergologia é tida como uma abordagem relacionada ao estudo da sinergia, que é a interação coordenada de elementos ou partes em um sistema para produzir um resultado unificado e sinérgico. Em um contexto específico, pode se referir ao estudo da comunicação não verbal e dos gestos humanos para entender melhor a forma como eles se relacionam com a fala e o pensamento.
[2] Entre as principais críticas temos: (1) Falta de fundamentação científica: A interpretação dos gestos e comunicação não verbal é frequentemente considerada como uma área de estudo subjetiva, carente de rigor científico e de evidências empíricas sólidas para sustentar suas alegações; (2) Generalizações excessivas: Os críticos argumentam que algumas teorias de sinergologia podem levar a generalizações excessivas e simplistas, presumindo que gestos específicos tenham significados universais, ignorando a diversidade cultural e individual; (3) Falta de validação empírica: Muitas das afirmações feitas pela sinergologia podem não ter sido validadas empiricamente por meio de estudos rigorosos e testes controlados, o que levanta questões sobre a confiabilidade das conclusões; (4) Viés do intérprete: A interpretação da comunicação não verbal pode ser influenciada pelos preconceitos e percepções pessoais do observador, levando a conclusões tendenciosas e não objetivas.